Mais de 60 volumes do “Círculo do Humanismo Cristão” prepararam, nos anos 60, uma evolução que sacudiu a Igreja de Portugal nos tempos áureos do salazarismo e começou a abri-la a uma atitude militante.
No inicio dos anos 60, a Igreja de Portugal vivia sobre um vulcão. Mas um vulcão que ainda não explodira. As tensões eram fortíssimas entre os leigos e entre os padres, no campo político e no domínio religioso. De repente, dois acontecimentos essenciais vieram exacerbar, em 1958, o mal-, estar duns e doutros. O primeiro foi político, a campanha presidencial de Humberto Delgado, e o segundo religioso, a carta inteligente e corajosa do Bispo do Porto a Salazar. A experiência do "General sem medo" traduzira de forma definitiva as aspirações democráticas do povo português e deixava adivinhar que de futuro tudo seria diferente.
Por sua vez, a carta do Bispo do Porto libertou muitos católicos das amarras que os ligavam e deu-lhes um apoio precioso na sua vontade de construir uma sociedade portuguesa mais justa e mais livre.
A multiplicação das cartas
D. António Ferreira Gomes fizera escola: padres e leigos começaram também a escrever cartas, neste clima novo que se adivinhava.
Em Fevereiro de 1959, apareceu um duplo documento que sacudiu a monotonia oficial das relações entre a Igreja e o poder político. Por um lado , um texto sobre "as relações entre a Igreja e o Estado e a liberdade dos católicos" terminava por uma declaração em dez pontos que reivindicava a permissão dum debate "ideológico e construtivo" sobre a sociedade portuguesa. Alguns dias mais tarde, no 1° de Março do mesmo ano, era tornada pública uma carta a Salazar "sobre os serviços de repressão do regime". Tal documento pedia contas dos rumores (e até das mortes) que teriam acontecido às mãos da PIDE, inclusivamente na Rua António Maria Cardoso.
O tom firme e sereno dos dois textos fez mossa. Eram assinados por 43 cristãos da Igreja portuguesa, entre os quais cinco padres, à frente dos quais as figuras carismáticas de Abel Varzim e Adriano Botelho. E no meio dos leigos encontrava-se uma boa dúzia de pessoas ligadas à Livraria Moraes.
A resposta da PIDE não foi branda: inculpação por ofensas ao chefe do Estado e longas horas de interrogatório na sede. Alguns meses mais tarde, foram todos generosamente amnistiados. Era uma primeira aventura que deveria conhecer, para muitos deles, outros desenvolvimentos.
Três meses antes, tinha saído o primeiro volume duma nova colecção na Livraria Moraes, Disparates do Mundo, de G.K. Chesterton.
O livro de abertura deste “Círculo do Humanismo Cristão” começava por ser uma novidade, pois o humor nunca teve honras de altar na Igreja em geral, e na católica em particular. Coisa que os ingleses possuíam às carradas. Os romances de um Bruce Marshal, por exemplo A Escada de Jacob, tinham habituado o público a sorrir com os pecados do velho marinheiro português impenitente e com as reacções dos pastores da paróquia onde entrara o primeiro cinema, à hora do ofício.
Do mesmo Chesterton foi publicada, dois anos depois, uma Autobiografia, que dava conta da evolução do autor, que se tinha convertido ao catolicismo em 1922. Sempre o mesmo humor, agressivo e inteligente.
Tradutores excelentes
Não tenho a pretensão de defender que uma colecção de livros seja suficiente para desencadear uma revolução cultural, mas foi de facto a nova colecção da Livraria Moraes que reuniu, à volta do Vaticano II, as pessoas e os temas que ousavam enfrentar a mentalidade reinante.
A selecção dos títulos dependia também muito naturalmente de problemas de intendência com que se debatia o responsável da colecção. Mas uma certa cumplicidade nos ligava a todos, gerentes, empregados da livraria, até os próprios tradutores, naquilo que seria uma maravilhosa aventura. Convém aliás salientar a qualidade de certas traduções, confiadas a escritores reconhecidos como Nuno de Bragança ou Pedro Tamen, José Blanc de Portugal ou Jorge de Sena. Tal como se deve dar um especial relevo à colaboração do actual Cardeal de Luanda, D. Alexandre Nascimento, exilado em Lisboa com meia dúzia de colegas seus, entre os quais o Padre Joaquim Pinto de Andrade.
Por vezes, como num western de sonho, o heroi atirava mais depressa do que a sua sombra. Foi o que aconteceu com o livro de Jean-Paul Audet Casamento e Celibato no Serviço Pastoral da Igreja, editado pelo Circulo do Humanismo Cristão ainda antes de ser publicado em França.
Um novo olhar sobre o amor
As bases filosóficas da colecção foram dadas desde o inicio por dois autores-chave: Emmanuel Mounier, o fundador do personalismo, com textos escolhidos e apresentados, como não podia deixar de ser, por João Bénard da Costa, e Força e fraquezas da família, de Jean Lacroix, outra figura grada do humanismo cristão.
E talvez porque muitos dos casais empenhados na aventura do Círculo do Humanismo Cristão pertenciam às equipas de Nossa Senhora, uma boa parte das traduções empenhava-se em pôr ao alcance do público português um novo olhar sobre o amor e o sexo, para lá dos simples lugares comuns do catecismo. Isto explica a publicação de uma boa dezena de ensaios sobre este tema. À frente de todos Amor e Sacramento, do inevitável jesuíta francês Alphonse d'Heilly, grande animador das Equipas de Nossa Senhora, e de dois preciosos ensaios de Paul Chauchard: Aprender a amar e Envelhecer a Dois.
Do livro Este Sacramento é Grande passava-se a Moral sexual e dificuldades contemporâneas, por um grupo de teólogos, médicos e educadores, ou ao êxito comercial de A Temperatura, Guia da Mulher. Será difícil imaginar o que tais livros contribuíram para abrir novas perspectivas e criar um clima diferente entre os casais cristãos.
E como grande parte da equipa da Livraria Moraes não escondia as suas origens cristãs, bem natural seria que uma das primeiras preocupações tivesse sido a de oferecer ao grande público os escritos fundadores ,ou seja, os textos-base da fé que os animava.
Assim apareceu logo de entrada a celebérrima Imitação de Cristo, que teria sido aliás, se não me engano, o primeiro êxito comercial da colecção.
O número dois da colecção foram os Pensamentos do nosso velho conhecido Blaise Pascal enquanto se preparava a edição cuidada das Fioretti de S. Francisco e dos seus Frades com 10 desenhos do saudoso José Escada.
A influência de Carlos de Foucauld
No que se refere aos textos fundadores não podia esquecer as Meditações sobre o Evangelho de Charles de Foucauld, que preparavam a saída do precioso Presença no Mundo do Padre René Voillaume, fundador dos Irmãozinhos de Jesus. Nessa altura as Fraternidades de Charles de Foucauld desempenharam um papel importantíssimo na evolução da Igreja portuguesa. Instaladas numa simpática fraternidade de Fátima ou numa barraca igualmente acolhedora do bairro da Curraleira, em Lisboa, ou mesmo ali numa travessa junto ao Cais do Sodré, a pobreza de meios e a força do testemunho desta vida religiosa convenceram muita gente que descobria no exemplo das Irmãzinhas um outro estilo de se viver em Igreja.
Um tal modelo de abertura e simplicidade devia naturalmente marcar a Igreja portuguesa. O que não impediu certos malentendidos, como por exemplo no momento em que as Irmãzinhas tiraram da sala de leitura a revista Informations Catholiques Internationales, um gesto que fizeram "a pedido de várias famílias", segundo diziam, porque as queixas eram demasiadas... Os medos e receios eram tais numa certa Igreja de Portugal que mesmo publicações como as ICI eram consideradas excessivas e faziam correr o risco de disputas e arrelias. As Irmãzinhas escolheram evitar de raiz todo e qualquer desentendimento e retiraram a revista da sala de leitura.
É que a revista se tinha transformado num órgão de informação completo e autorizado em tudo o que dizia respeito à Igreja de Portugal. Em várias ocasiões apareciam grandes reportagens sobre as guerras coloniais e os problemas que elas levantavam à consciência dos católicos portugueses.
Os grandes nomes da teologia
Este clima de medo, de intimidações e ignorância caracterizava a Igreja de Portugal nos anos 60 e explica como foi libertador o anúncio do Concílio por João XXIII. O Vaticano II abrira as suas portas em 1962 e tenho para mim que foi precisamente o seu impacto que deu a primeira machadada no totalitarismo eclesial em vigor. Pela porta aberta entraram os sessenta e tantos volumes da colecção do Circulo do Humanismo Cristão, um dos grandes agentes desta revolução doutrinal.
A imprensa internacional, o desenrolar do Vaticano II, o clamor das Igrejas do Terceiro Mundo começaram a chamar a atenção para o escândalo das guerras coloniais. A Concordata e o Acordo Missionário já não eram suficientes para nos impedir, em Portugal, de aceitar de olhos vendados que se estava a dilatar a Fé e o Império.
Mas para estruturar a doutrina conciliar e aprofundar a teologia da Pacem in Terris e dos documentos conciliares, era urgente e preciosa uma reflexão teológica. E foi lá que se deu a grande reviravolta. Porque de repente, como se fosse a coisa mais natural do mundo, começaram a entrar no público português nomes que eram lenda para os horizontes limitados e obsoletos daquela altura . Assim o dominicano Yves Congar, o exilado de Estrasburgo (Vasto Mundo, Nosso Mundo), como o jesuíta Yves de Montcheuil, que iria ser fuzilado pela Gestapo (A Igreja e o Mundo Actual). Maurice Nédoncelle, o especialista de Newman e da Igreja Anglicana (Encontros com Deus e Para uma Filosofia do Amor e da Pessoa); como Max Thurian, porta-voz da Comunidade de Taizé (A Unidade visível dos Cristãos). Outros teólogos de nomeada, como Chenu e Häring, Jean Daniélou ou González Ruiz eram periodicamente editados. E para que o Concilio do Vaticano II criasse raízes mais profundas, lançou-se a série muito apreciada dos "Textos Conciliares". Foram seis volumes ao serviço duma Igreja que, pela sua parte, começava a suscitar desconfiança.
Debate aberto
Uma certa Igreja via com maus olhos toda esta actividade à volta do Vaticano II, tanto mais que até em Roma se começavam a debater às claras certos problemas da Igreja universal em relação aos quais a Igreja de Portugal vivia a milhares de léguas de distância. Foi assim que foram editados, em 1969, o Dossier do Catecismo Holandês, que tanta celeuma levantou nas Igrejas da Europa, e a análise de Erwin Kleine A Igreja da Holanda contra Roma?. Apareceu também o Requiem pelo Constantinismo / A Carta do Padre Arrupe pelo grande teólogo espanhol González Ruiz. Tais livros mostravam que a Igreja universal estava viva e davam-nos vontade de instaurar em Portugal o mesmo clima e uma discussão livre. Para isso contribuiu grandemente a publicação de dois livros de Henri Fesquet, o cronista do Monde que escrevia do concílio: Catolicismo Religião de Amanhã? e Roma converteu-se?
Preparámos a Fesquet uma estadia em Portugal e ele ficou entusiasmadíssimo com o que viu e ouviu, e cujos ecos publicou no seu jornal.
Essa reportagem do Monde deu brado por causa da importância do jornal e do prestígio do seu autor no mundo conciliar. Apareceram em Portugal panfletos ferozes para destruírem o impacto do diário parisiense. Num deles se dizia, por exemplo, que os Padres "progressistas" de Lisboa uma "dezena ao máximo, são todos culturalmente bastante medíocres e nem mesmo intelectualmente merecem respeito". Criticando ferozmente os cadernos Gedoc, que eram coordenados na paróquia de Belém, os mesmos defensores da ortodoxia avançavam mesmo que o Padre José Felicidade era "duma audácia patológica em todos os domínios, que um bom psiquiatra classificaria como um puro caso de paranóia".
O impacto da Igreja de Lisboa
Portugal tinha vivido longos anos sob a ditadura dum "pensamento correcto",monolítico e eficaz, que moldava os espíritos. Nem era precisa a censura, ela impunha-se por si própria. O Cardeal Cerejeira exercia um monopólio de facto sobre os outros bispos e tentava resolver todos os problemas com uma destreza eclesiástica mais habilidosa que evangélica. De tempos a tempos sabia-se que, nos encontros episcopais de Fátima, uma ou outra voz se teria levantado contra esta autoridade incontestada exercida pelo Cardeal Cerejeira sobre os seus colegas da Igreja portuguesa no seu conjunto. Sentia-se entre a gente do Norte e nomeadamente nas colunas da VOZ PORTUCALENSE, a partir de 1969, um tom de arejamento ou mesmo de revolta. Mas enfim, tudo se resumia ao que o Bispo do Porto era capaz de escrever, ainda do exílio, ao Cardeal Cerejeira: "Nunca nos pudemos compreender, não nos compreendemos hoje, e decerto jamais nos viremos a compreender" (Carta de 16 de Julho de 1968).
O governo de Salazar também não foi capaz de compreender que as guerras da independência em Angola, Guiné e Moçambique não poderiam continuar a ser indefinidamente escondidas à nossa opinião pública e à opinião internacional.
Apesar da abertura conciliar, a Igreja entre nós tentava a todo o custo manter a fidelidade aos grandes princípios, ao imobilismo, à recusa do diálogo.
Em 1964, o Cardeal Cerejeira enviou uma carta ao Dr. Alçada Baptista a lamentar que os livros que a Moraes editava causassem "perturbações no meio católico". E sob a acusação de que a Livraria não tinha conseguido manter uma "inalterável atitude de harmonia com o pensar e o desejo da Autoridade diocesana", o Cardeal retirava-lhe o "Imprimatur".
Sem a mesma diplomacia, um guardião do templo, o Padre Videira Pires, que viera de Trás-os-Montes para organizar em Lisboa a campanha contra os "progressistas", lembrava sem mais delongas , num programa radiofónico emitido a 2 de Março de 1969, que uma nota colectiva do Episcopado português tinha condenado "a orientação de uma determinada editorial de pretenso humanismo cristão pela campanha de franca heterodoxia que andava a difundir no nosso meio".
A luta era desigual. O padre Videira Pires tinha acesso aos microfones da Emissora Nacional e, do nosso lado, não havia outro meio senão o de forçar a abertura das portas fechadas.
O encontro do Entroncamento
Foi assim que, em Novembro de 1969, o Prior do Entroncamento, Carlos Leonel, acolheu 68 padres vindos de cinco dioceses e de cinco ordens religiosas, para um debate sobre "A rentabilidade evangélica do serviço do padre na Igreja de hoje". Todos os bispos foram convidados. O Bispo do Porto pôs como condição à sua presença que houvesse outro bispo da diocese de Lisboa, o que não se verificou. O Cardeal Cerejeira preferiu denunciar "factos que escandalizam todo o Povo de Deus, contribuindo para a ruína da Igreja nas almas".
Quase sem se dar por isso, amigos e leitores do Círculo do Humanismo Cristão começaram a derivar da simples leitura para a acção militante, à volta de dois temas que constituíam a pedra de escândalo ou o pomo de discórdia das relações entre o fascismo e os católicos portugueses: as guerras de Africa e as relações entre a Igreja e o Estado, ou seja, as relações entre fé e política.
E assim nasceu a primeira equipa de difusão do “Direito à Informação”, como apareceram os primeiros padres a avançar fundos para a Cooperativa, que acabava de nascer. E é sempre com emoção que de vez em quando passo os olhos sobre a lista dos "generosos doadores" da Pragma, alguns dos quais partiram já deste mundo, tais como os Padres Adriano Botelho e Mário Cunha.
O movimento acelerava-se e ia muito além de saber se havia ou não o "imprimatur" do Patriarcado para os livros do Círculo do Humanismo Cristão.
Em Moçambique, as tomadas de posição dos capelães militares, assim como a presença corajosa dos bispos da Beira e de Nampula,exacerbaram os ânimos. Os Padres Brancos demitiram-se em bloco em 1970 porque a sua presença "se tornara um contra-testemunho". Em Londres o padre anglicano Hastings fazia conhecer os massacres de Wiryamu, cometidos pelo exército português. O padre Mário, da Lixa, levantava o problema dos capelães militares e conhecia a prisão.
Mas a hora já não era só de ler livros ou de distribuir publicações clandestinas. O 25 de Abril aproximava-se. E na Primavera de 1974 foram libertados de Caxias os padres Luis Moita e Carlos Póvoa. Duas semanas antes tinham tido a mesma sorte os padres Ismael Gonçalves e António Correia, pároco de Palmela.
Estrasburgo, 8 de Abril de 2006