Poucos escritores terão sabido representar na sua obra a mulher com tanto amor e compreensão como António Alçada Baptista.
O autor de Peregrinação Interior sofreu a mesma evolução de alguns católicos progressistas portugueses, que ao longo dos anos sessenta viveram um cristianismo militante (intensamente espiritual e, no campo político, marcado pela intervenção antifascista) para uma atenuação dos espartilhos religiosos, que se traduziu em separações matrimoniais e nalguns casos foi até à aproximação do marxismo. Alçada Baptista, que muito cedo se afirmou literariamente com o seu notável livro de memórias (ou de confissões e reflexões) Peregrinação Interior, veio depois a destacar-se desse grupo, (tal como noutro plano Nuno Bragança) pelo seu talento de cronista e romancista ultracomunicativo.
Sem possuir um estilo propriamente criador, com singularidade literária, este conversador lúcido, amável, capaz de profundas análises de tom geralmente oral, soube, em romances como Os Nós e os Laços (1985), O Riso de Deus (1994) ou O Tecido do Outono (1999) penetrar muito no âmbago das relações entre homens e mulheres, amor, sexo, amizade, cumplicidade, ao mesmo tempo que nos dava um quadro abrangente, simultaneamente desencantado e fervoroso, das lutas e derrotas de uma geração burguesa e intelectual, de tradição cultural francesa, que se opôs à ditadura de Salazar, reagiu diversamente ao consulado de Marcello Caetano, viu surgir a revolução de Abril com alegria, depois algum tanto se desiludiu e só não caiu no cepticismo porque encontrou no culto dos afectos um derivativo para o desânimo. Uma outra forma de paixão, até porque as grandes, as maiores amizades nos romances de Alçada Baptista, que tão bem espelham a vida e a restauram, são entre homens e mulheres, por vezes amantes ou ex-amantes, outras vezes confidentes. E confidentes é uma palavra sagrada nos encontros e reconhecimentos e adivinhações em que se movem essas as suas personagens, tacteando em busca do aperfeiçoamento humano.
Estes pares de namorados ou companheiros de alma, que também descobrem com ternura as exigências e os segredos do corpo e conseguem acarinhar as imperfeições do outro ou as marcas do tempo, até os sinais do mal, que é por vezes dor, constroem um mundo quase mais feminino do que masculino, ou seja, menos agressivo, que Alçada Baptista rege e a que se submete, rendido ele próprio ao feitiço da mulher-mãe, irmã, conselheira e pupila de lições de amor, e a sente à mesma altura ou até superior ao homem.
É nessa relação de igualdade, de partilha e de doce convívio com a mulher (centro, ou um dos centros, da sua obra, polarizada também em Deus) que Alçada Baptista se pode comparar à cultura francesa, no terreno da literatura e no da vida.
Mas detenhamo-nos ainda nalguns textos seus. Em O Tecido do Outono, já quase no final do romance, o narrador personagem diz a Eugénia, após um êxtase erótico por ambos comungado:
«As relações de sexo podem ser vividas enquanto somos novos, mas os encontros de amor exigem essa maturidade, quase a ausência do desejo. Gosto de estar aqui contigo, fazer festas no teu corpo já cheio de tempo, apetecer-me beijar-te porque estou a beijar a tua história pessoal, aquilo que viveste, as tuas alegrias e as tuas dores. É nestas coisas que sinto que envelhecer é uma arte e que o amor só se vive plenamente quando o desejo já não comanda o nosso encontro mas sim aquilo que somos e a qualidade da nossa relação»1
É no respeito amoroso, na compreensão da mulher, tal como no calor das palavras e actos, na fina destrinça dos sentimentos, que António Alçada Baptista se equipara à sensibilidade francesa e aos grandes romancistas e poetas gauleses, de Charles d’Orléans a Ronsard, a Stendhal, a Flaubert, a Anatole France, a Paul Bourget, que amaram a mulher e sobretudo aos que a trataram de igual para igual ou a veneraram eroticamente como Aragon e Éluard, como Robert Desnos.
A França e especialmente Paris, onde nos anos cinquenta e sessenta os intelectuais portugueses iam ver filmes sem censura, comprar na Joie de Lire os livros que em Portugal não entravam, eram o centro de fermentação de ideias e de modelos de vida, até de exigências ousadas que atraíam esses ex-praticantes católicos, a deslizarem cada vez mais para a esquerda, de quem Alçada Baptista não esteve longe.
Simplesmente, a arte de Alçada, ao assimilar e reproduzir esse picante de transgressão, como em Catarina e o Sabor da Maçã (1988), torna natural o que outros poderiam carregar com tintas cruas e chocantes. Ele vê sempre de preferência o humano, o luminoso, mesmo em práticas que um moralismo severo condenaria.
As mulheres que Alçada recria nas suas personagens dispostas ao amor, como que as acaricia física e espiritualmente e são de todas as raças e cores. Não apenas brancas, mas com frequência mulatas ou negras. Se a sua origem cultural é essencialmente bíblica e francesa, o universo que, na sua maturidade, decisivamente o conquista é o da lusofonia. É o Brasil, são as Áfricas que falam português, Cabo Verde, a Guiné, Angola, as novas matrizes desse estar no mundo com alegria e amor que se nos depara nos livros fundamentais da obra de Alçada Baptista. No seu admirável O Riso de Deus, releitura da própria vida e dos afluentes afectivos que nela desaguaram, suavizando o desabar de muitos ideais e projectos, e no seu ao mesmo tempo céptico e comovido O Tecido do Outono, onde as feridas saram nos meigos abraços e o pregrino que é sempre o narrador destas ficções, densas de registos biográficos, vai achar na nova luz dos dias reconstruídos a salvação possível.
Se quisermos encontrar parentes de Alçada Baptista do lado da lusofonia, teremos de volver a Jorge Amado, ao seu perfeito encantamento frente à mulher, ou a poesia de Vinícius de Moraes, ao seu culto da vénus brasileira ou do brotinho encantado. Mas para Vinícius o amor é sempre eterno enquanto dura; segue, de certo modo, a linha do amor louco bretoniano, enquanto para Alçada Baptista o amor apetecível deve ser sereno, ameno e livre de muitos entraves. Por vezes as personagens de Alçada optam, como Sartre e Simone Beauvoir, pela fuga à coabitação, pelo menos como etapa. As últimas linhas de O Tecido do Outono consagram essa escolha.
Na vida real Alçada Baptista é um patriarca rodeado de filhos e netos e muitos afectos, que soube cultivar, amigos e amigas.
Mas há também na sua obra muito de vivido, sofrido, reflectido e saboreado. A sua sabedoria empírica da amizade e do amor espalha-se pelos seus romances e novelas, memórias e introspecções, crónicas de jornal e de rádio. Uma oralidade muito aplaudida que talvez tenha afectado negativamente a recepção crítica da sua obra, nem sempre devidamente valorizada em Portugal, pois no Brasil o seu êxito é total.
A relação com Deus, com a Igreja, a prática da caridade, a luta contra a miséria são outras áreas não menos importantes da temática de Alçada Baptista. Tratadas todas elas no discurso coloquial, que faz passar facilmente mensagens por vezes de grande riqueza confessional e especulativa, com as quais nem sempre estou de acordo, sobretudo no domínio político, mas que passam em revista de modo claro os valores de uma época e a crise dos católicos durante e depois da ditadura fascista e por ocasião do ocaso do chamado «socialismo real».
Os livros de António Alçada Baptista vendem-se muito, em Portugal e no Brasil, o que poderia levar a aproximações, que seriam injustas, com alguma literatura light. De facto, à parte o discurso transparente, sem artesanato literário, mas nunca frívolo, não há pontos de contacto, nem com os romances «sentimentais» próximos do cinema de consumo fácil, que por aí proliferam, nem com aqueles que Miguel Real, num interessante artigo crítico, já chamou «romances citadinos, que de algum modo espelham à superfície a vida urbana, as novas regras das relações na classe média alta, lazeres, ambições e gadgests, sexo, vaidades, de que Margarida Rebello Pinto será talvez o expoente mais relevante, (já que Rita Ferro se situa num patamar superior), com certo humor, ágil observação e capacidade narrativa, embora muito na área da frivolidade.
Alçada Baptista sabe prender o leitor e mostrar-lhe, sobretudo através do diálogo, mas também em relances interiores e juízos «autorais» concedidos às personagens, os seus desejos, memórias, projectos, repulsas e recusas, miragens, ambições, fracassos.
Na obra de Alçada Baptista a terra é mulher, e vida é mulher – guerreira ou penépole, mulher que é carne do corpo, sentido da alma.
Tornar o conhecimento carnal, como queria Blake, por intuições imediatas, pelos sentidos corporais – é um dos caminhos que modestamente Alçada Baptista aponta nos seus romances.
São exemplares, desse ponto de vista, as conversas do narrador e de Hannah em Paris, em O Riso de Deus, para mim o livro mais rico e revelador de Alçada Baptista, com a sua perfeita digestão da cultura, o seu reexame dos ideais, a sua experiência profunda dos comportamentos humanos, como na pintura da relação com Sarah e com Rita.
Diz o narrador personagem de O Riso de Deus:
«Eu acho que passei toda a minha vida a querer amar mas emperrava sempre no modelo que nos deram e nesse eu já não acredito. Mas porquê? Às vezes penso que eu teria uma expectativa quase mística do amor humano e que isso me tornou o modelo impossível. Mas, qual é o espaço do modelo humano? Qual é o espaço dessa chamada para a transcendência que eu não consigo desligar do amor? Qual é o espaço da solidão? Qual é o espaço da comunhão? Porque, por maior que seja a minha intimidade contigo, há muitas coisas que ficam de fora e as mulheres provocam-me sempre uma espécie de atracção que já não é o desejo mas o querer encontrar uma resposta para uma pergunta que eu nem sequer sei qual é.»2
O narrador confessa um ponto de viragem na sua atitude perante o amor, perante a mulher.
Denis de Rougemont, em O Amor e o Ocidente, estuda profundamente a relação da mística epitalâmica (casamento da alma com Deus: conhecer, amar, encontrar) com o amor terreno homem/mulher. O Ocidente associa o amor à retórica cortês e aos místicos espanhóis, à procura de um absoluto no eros, veiculado por palavras do léxico profano (o dardo de amor, etc.)
Tristão, o paladino da fidelidade amorosa, é oposto por Denis de Rougemont, como paradigma, a um outro pesquisador do absoluto (mas herético), pela via do prazer e da profanação dos corpos, D. Juan.
Da dialéctica destes contrários surge o modelo do amante europeu.
Mas Alçada Baptista acaba por recusar um e outro, refugindo-se num amor-amizade, natural e suave, que os seus últimos livros consagram.
O mais interessante, porém, talvez seja o modo como ele invade o universo feminino e recria o pensamento e a sensualidade das mulheres.
Rita, com quem o narrador dialoga nesta passagem de O Riso de Deus, é o exemplo da mulher tranquilamente liberta.
Responde-lhe sempre taco a taco, nesse discurso oral avesso à sintaxe impecável que Alçada Baptista utiliza, na sua busca de espontaneidade. Rita irá mesmo ao ponto de denunciar o que no homem-amigo das mulheres resta ainda de paternalismo:
– « Acho que tens muita complicação na tua cabeça. Há coisas que são simples: é evidente que gostas das mulheres. Eu não sou capaz de te ver sem essa atracção que te leva ao encontro das mulheres. Faz parte de ti e eu gosto é de ti. Não estou aqui para fazer de ti outro homem. Se não tivesses essa atracção pelas mulheres é porque eras outro e, se calhar, não gostava de ti.
– Mas, Rita, tu tens atracção pelos homens?
– Eu se calhar sou muito egoísta porque, antes de te conhecer, os homens davam-me muito trabalho. Andavam ali nuns enredos infantis, inteiramente ao lado do que eu estava à espera. Também acho que não fui feita para encontros de acaso. Não é que não tivesse vivido alguns mas tudo o que é importante tem de ter uma história. Se tivéssemos tido um breve encontro a nossa relação não tinha tido nenhum sentido. Vou-te dizer: a minha relação com os homens deu-me a sensação de tempo perdido. Eu, de um homem quero o afecto, do resto não preciso: não preciso das suas confidências, das suas angústias, das suas inseguranças. Posso ouvi-las e tentar ajudar mas não são coisas que me levem para a cama que ela não foi feita para isso. A cama é o nosso repouso, é o nosso recreio: para ficarmos cansados bem basta o resto da vida. A minha experiência de homens é que, a certa altura, sentia-me uma educadora infantil a contas com um jardim de infância, o que não é exactamente a minha vocação. Mas as mulheres não desgostam disso. Andam com a maternidade atravessada e adoram um homem a queixar-se no ombro e a fazer birras. O meu casamento foi uma grande escola para o resto da minha vida. Foi bom, porque tive o Filipinho e o casamento ainda é a maneira mais simples de ter um filho, mas fiquei curada da conjugalidade.
– Se calhar a minha procura das mulheres é exactamente porque elas ficaram com segredos que os homens não têm...
– Acho que também não vale a pena arranjar justificações. Eu até te acho graça...
A Rita surpreendia-me porque via quase com frieza estas situações onde as outras punham drama e ciúme. Eu achava que ela tinha nascido sem mitos colados ao corpo e que sentia os grandes apelos da alma mas parecia inteiramente liberta dos pesos do tempo e da cultura. Uma vez contei-lhe a história da Mónica e confesso que estava muito enternecido comigo, pela «nobreza» da minha reacção. Ela deitou tudo ao chão:
- Tu tiveste foi medo...
Eu pensei para mim e disse:
Se calhar foi. Mas, sabes, a gente tem muitas coisas cá dentro e, em situações como estas, inteiramente novas, nem sempre é fácil seguir um caminho novo...
- Vê bem. Tu não desistes é de usar o teu paternalismo como forma de poder. Já te libertaste do poder mas acho que esse é o que te resta. A Mónica tem 27 anos que, para já, não são como eram os teus. É uma menina dorida com a experiência dos homens. Pensaste se ela não gostaria do carinho que tu lhe podias dar? Pensaste se, por uma vez, ela não iria com um homem para a cama para encontrar exactamente o que ela queria: um pouco de paz e de ternura que ainda não encontrou? E tu? Depois do que te aconteceu com a Rosa não te saberia bem o amor daquela menina mais as cumplicidades acrescidas que daí poderiam ter vindo? Tu próprio sabes o que pode vir do corpo mas acontece é que, se calhar, o teu corpo não está ainda inteiramente purificado e tiveste medo que ele fosse sujar a Mónica. No fundo, porque é que não amaste a Mónica? Agarraste-te às razões que fizerem deste tempo um tempo de culpas: ai que é minha sobrinha, que a vi pequenina, que lhe dei banho... E daí? O problema é que não acreditaste na liberdade dela.
Eu fiquei apanhado com estes argumentos da Rita e não arranjava maneira de lhe responder:
– Não era só isso, Rita. Ela estava à espera de uma coisa que eu não lhe podia dar...
Para já, ela estava à espera de amor... Há coisas que só seremos capazes de viver quando recuperarmos a inocência perdida.»3
Eis a palavra chave deste texto: a inocência. Há que notar entretanto que essa inocência perdida, nem Rita nem o narrador conseguem vivê-la completamente. É apenas uma meta a atingir nas relações homem/mulher.
Quando é que lograremos, os cerebrais que nós somos, agora em 2005, pôr uma pedra, nem que seja a prazo e em espaço eleito, sobre as interrogações e angústias dessa cerebralidade?
A terminar, como amostra de uma esperança, no universo de Alçada Baptista, transcrevo ainda mais um excerto do discurso libertador de Rita:
«– Isto para mim é muito simples – explicava. – Faz-me impressão como as pessoas são capazes de viver doutra maneira. Eu não preciso nem do teu dinheiro, nem da tua casa. A verdade é que há quarenta anos que vivo sem ti. As pessoas têm que descobrir que viver o amor é qualquer coisa diferente dos jogos, normalmente perversos, do seu ego carenciado. Eu gosto muito de ti mas tenho a consciência de que há em mim um destino meu e que grande parte das teorias sobre a dualidade são justificações para a nossa terrível tentação de dependência. Gostamos de andar encostados uns aos outros e não há maneira de nos curarmos disso. O que temos de aprender não é com um outro, é com os outros. Se eu te dissesse que eras a razão da minha vida, estava a mentir-te. Tu dás-me muito e eu gosto muito de ti. Estou farta de te dizer que gosto do teu carinho e que nenhum homem me deu a paz que tu me dás. E é isso que me dá prazer e faz, do fazer amor contigo, o prazer que nunca ninguém me deu ainda. A gente demora a libertar-se desta coisa do o desejo tomar as iniciativas. Hoje, para mim não é o desejo que comanda o amor: bom é o desejo que o amor provoca.»4
1 António Alçada Baptista, O Tecido do Outono, Lisboa, Ed. Presença, pg. 182
2 António Alçada Baptista, O Riso de Deus, Lisboa, Ed. Presença,
1.ªEd. 19945, p. 197.
3 Ibidem, p. 198
4 Ibidem, p. 196.