Sempre vi o António como um “psiconauta”, um “espírito boémio” (estou a citá-lo) que não pára em nenhum lugar, porque cada porto de chegada, uma vez lançada a âncora, se converte de imediato em porto de partida. Um homem, portanto, “em trânsito”, em permanente estado de aventura.
O que faz correr? Interroguei-me algumas vezes. Não tenho, obviamente, respostas, porque os seres humanos, mesmo os que nos ficam próximos, são irremediavelmente opacos e secretos. Posso apenas suspeitar, ou imaginar, que ele sempre correu movido pela curiosidade, pelo gosto da novidade, do desconhecido, da aventura, mas também – ou sobretudo – por uma inquietação interior, um mal estar metafísico que não o deixava instalar-se definitivamente em lugar nenhum. A sua casa era o mundo, a sua família e os seus amigos a humanidade. Projecto demasiado vasto, diríamos, megalómano, e finalmente desumano, que o forçaria a uma corrida esgotante e baldada.
No entanto, para além do “anjo da esperança”, que nunca o abandonou, o António tinha outros anjos a acompanhá-lo: o riso, a ironia, e sobretudo a salvadora auto-ironia, que relativizava todos excessos. Assim, a “corrida” nunca foi um projecto esgotante e desenfreado, foi uma “peregrinação” sem “ deadlines” nem cronómetro, sem espírito de competição, nunca perdendo de vista o lado lúdico das coisas, o puro divertimento.
Sem espírito de competição, porque nenhuma forma de poder, ou de luta pelo poder, estava em causa. O António sempre pertenceu, confessadamente, ao número daqueles a quem o poder não interessa.
Podemos, naturalmente, lamentar esse facto. Movidos pelo nosso pragmático senso comum, podemos por exemplo lamentar que um advogado como ele tenha abandonado de vez a advocacia e seja agora uma voz credenciada a menos a levantar-se, a partir de dentro, contra a desgraçada justiça que nos desgraça. Podemos lamentar que ele tenha saído da política activa (onde na verdade, para lá de uma candidatura a deputado pela Oposição Democrática em 1969 nunca chegou a estar realmente) e desfiar ainda outras lamentações.
Mas, caindo melhor em nós, verificamos que não temos direito a lamentar coisa nenhuma, nem a emitir juízos sobre as escolhas dos outros. O António escolheu o seu caminho, e teve a coragem de o seguir. Nem tudo foi fácil nem coroado de êxito, houve danos e perdas, lutas e naufrágios. Mas o caminho fez-se, a peregrinação continua.
E temos de reconhecer que, não se interessando pelo poder nem tendo um espírito pragmático, o António conseguiu, apesar disso, mudar muita coisa na sociedade e no mundo à sua volta. Recordemos, com gratidão, sempre renovada, “O Tempo e o Modo”, revista que ele fundou e dirigiu entre 1963 e 69; ou a editora Moraes, de que foi director editorial a partir de 1957, que deu a projecção que mereciam, mas ainda não tinham encontrado, a autores como Jorge de Sena, António Ramos Rosa, Alexandre O’Neil, Maria Velho da Costa, Nuno Bragança e outros ainda. O seu amor pelo livro e pela cultura colocou-o numa situação privilegiada para presidir à criação do Instituto Português do Livro, cargo que ocupou até 1986, e lhe permitiu estreitar laços com o Brasil e com África, especialmente com Cabo Verde e Moçambique.
E temos ainda muito mais a agradecer-lhe – os vários livros de memórias e de crónicas, os romances, as intervenções nos mídia. Temos sobretudo a agradecer-lhe ter partilhado connosco as etapas e as estações de paragem (provisória) da sua peregrinação interior. Por nos ter aberto o seu foro íntimo, mesmo no que ele tem de mais problemático, a relação com a transcendência, com um Deus que – à imagem do António – não é cruel nem desumano, mas compreensivo e afectuoso. Porque esse é talvez o centro do mundo do António – os afectos.
Por isso aqui estamos, todos os seus amigos, neste porto de passagem dos seus 80 anos, para lhe dar um abraço e dizer-lhe quanto gostamos dele e lhe estamos gratos. E para lhe desejar felicidades na continuação da viagem, porque a sua peregrinação continua.
Teolinda Gersão