Meu caro António
Fiquei contente e embaraçado quando amigos comuns me convidaram para escrever sobre ti, nesta justíssima homenagem, etc., etc., que o nosso Centro Nacional de Cultura em boa hora empreendeu, etc., etc. Contente já se verá porquê; embaraçado, porque era preciso ser um dos teus homónimos, o Santo de Lisboa-Pádua ou o Padre Vieira para que as palavras escritas não fossem uma sombra pálida do que se queria dizer e, por demais, de quem se queria por elas dizer, etc., etc..
Parecia-me também ridículo, sendo tu quem és, fazer um elogio panegírico: a única compensação seria imaginar-te, ao lê-lo, a esboçar um sorriso dos teus, levemente melancólico e matreiro, que sempre me assombrava (em todos os sentidos do termo) e se abria numa palavra sempre imprevista, provocante, inspiradora. Pensei, então, que só me restava – e com muito gosto – mergulhar nas memórias que de ti guardo ciosamente, e desses tempos idos, e grafá-las neste papel.
Mergulhei mas, já se sabe, a memória profunda é água turva pelas sombras que encobrem o que inconscientemente se esqueceu, ou mal me lembra, desde porventura há mais de meio século em que te conheci. E digo porventura porque foi uma ventura e porque uma dessas turvações é dessa data que, pelo contrário, queria estivesse marcada com uma bola branca (como se diz quando se é desta cor). Esquadrinhando bem, acho que terá sido no início dos anos 50. Eu estava então muito envolvido na Acção Católica, mas tu não, e talvez tivesse ouvido o Padre Dr. Domingos Maurício, S. J., assistente de santa memória da JUC feminina e director da Brotéria, falar de um rapaz vindo das jesuíticas Caldinhas e dotado de um imenso talento (abrenúncio, ó Pacheco!).
Mais seguramente teria sido a propósito da Livraria Morais, que o assistente da JUC, Padre Dr. António (também!) Rodrigues, nos apontava como mais aberta aos ventos do aggiornamento pré-conciliar, que já sopravam, do que a sólida e conservadora União Gráfica. Lembro-me até que fui lá buscar um livro francês, cujo nome não me ocorre, e que serviu para estudo na JUC diocesana, em 1950-51. Pensando bem, foi então que eu te devo ter conhecido.
Conhecido e admirado. Porque logo te tornaste para mim um exemplo e mesmo uma espécie de arquétipo (até com implicações míticas). Haver um jovem tão puramente idealista que, em vez de gozar a herança das Tias num viver de lazeres e prazeres cultos, a investia na causa necessária e arriscada do saber humanista, cristão, interventor, isso era um feito que me causava espanto. Eras o homem que eu, secretamente, desejaria ser, houvesse a sorte de ter tido Tiazinhas de tal calibre. E com esse espírito empreendedor, nunca ganhaste a ambição do lucro, aliás improvável nesses tempos de pouca leitura e muita censura; nunca perdeste o gosto de viver uma vida aventurosa; nunca te passou aquele sorriso límpido, tímido, optimista, sempre pronto a uma palavra iluminante e irónica.
Se não te zangas com uma deriva onomástica, eu achava no teu nome sinais significativos e contraditórios. António era, já o disse, o Santo que contribuiu para a revificação franciscana da Igreja, há oito séculos; António era o Vieira, «Imperador da língua portuguesa» (Fernando António Pessoa, em Mensagem) – e tu tens algo de ambos, a teu modo, e, naturalmente, est modus in rebus; António, porém, era também esse Oliveira Salazar que detestavas e de quem nada de perecido tinhas. Desculpa, mas não pude conter-me nestes joguinhos cabalísticos (ou lá o que é)...
Desde então – consente que o confesse – passaste a ser um dos meus amigos de secreta referência. Mal «acomparado» (como diz o povo), fazias-me pensar no Citizen Kane, na sua obsessiva paixão editorial, no seu desmesurado gosto pela acção arriscada. E fazias-me também pensar numa daquelas personagens idealistas e despaízadas de Federico Fellini, cujo cinema tanto admiravas.
Eu, sempre ocupadíssimo com a família (que crescia a olhos vistos), com a profissão (cada vez mais premente) e ainda ligado à Acção Católica, não te via muito, mas ia amiúde à Morais procurar as últimas novidades então ditas «progressistas». E quando a Livraria passou a proliferar nalguns dos empreendimentos editoriais mais marcantes dessa época de riscos censórios, eu fiz-me logo cliente deles. Eram os livros do Círculo de Humanismo Cristão, eram os Cadernos de Poesia, era O Tempo e o Modo (onde também colaborei sobre cinema, uma vez por outra)...
João Bénard da Costa, num livro recente, chamou à nossa geração «os vencidos do Catolicismo». Mas esta situação ter-se-á verificado mais tarde. Porque, nesses anos 1950-60, à roda do Concílio Vaticano II, o grupo de católicos suspeitos de «progressistas», pelos sectores eclesiais e políticos conservadores, vivia numa enorme euforia e esperança de que fosse possível revitalizar a Igreja, torná-la – como se dizia – menos constantiniana e mais evangélica, e construir uma sociedade mais justa e mais fraterna, num mundo pacífico.
Além de ideias mirabolantes e oportunas, tu tinhas um espantoso faro para escolher colaboradores. Citando só quatro nomes de proa (e muitos outros o mereciam, especialmente os inúmeros articulistas da revista que eram de grande qualidade e alguns estreantes), eu já conhecia Pedro Tamen e João Bénard da Costa das lides do Centro Cultural de Cinema (CCC) – de que fui co-fundador – e das andanças de debate e crítica cinematográfica animadas pelo então Padre José Vieira Marques (que saudades desse tempo e desse homem tão empreendedor, que hoje já não está neste mundo!). O José Escada era meu amigo muito admirado desde 1954, quando lhe comprara quadros e desenhos que tenho entre os meus favoritos. A Helena Vaz da Silva, essa era minha prima não muito afastada, e com ela e o Alberto convivíamos no âmbito das Equipas de Casais de Nossa Senhora. O Pedro, na livraria (com o Escada como ilustrador dos livros da Morais), o João, na revista, a Helena, na Concilium e noutras publicações sobre a Igreja durante o Vaticano II (que dela e dele davam uma informação e uma imagem mais ousadas do que as nossas instâncias eclesiais).
Por outro lado vem-me a lembrança de quanto gozo me deram os livros que escreveste, esses espelhos em que te mirava. Estou longe de ter uma ideia do que por cá se escreve. Mas, no teu género – de memórias gostosas e bem humoradas, de reflexão sobre as circunstâncias das pessoas e da sociedade, de uma mundividência humanista cristã e atenta à comédia (e por vezes à tragédia) humana – não conheço quem escreva melhor, aqui e agora, num País de tantos, tão talentosos e variados escritores. E não só nos livros mas também em tantos escritos de opinião, intervenção ou ensaio, merecedores de uma publicação que fosse reeditando as tuas obras completas.
Eu que, enquanto dirigente da Acção Católica, andava tolhido pelo compromisso solene de não assumir atitudes políticas partidárias, espantei-me e admirei-te quando tomaste publicamente partido pela Oposição. Eras nisso um dos católicos mais em vista, mas eu sempre temi que a Opsição viesse a ser dominada pela garra marxista-leninista-estalinista (e não sem razão, por influência antiga do meu querido Padre Abel Varzim, que acusara o comunismo soviético de doutrina satânica...).
Subitamente, com a liberdade por que tanto te bateras, veio a tragédia, num inesperado contraste deplorável. Fiquei triste e desanimado com os ventos que sopravam quando soube da catástrofe que se abateu sobre as instituições que criaras, e as levou à falência financeira e ideológica. Que cruel ironia do destino ver a Morais e O Tempo e o Modo ocupados por irresponsáveis maoístas que te substituíam ao leme pelo Grande Timoneiro e Educador da Classe Operária... Miticamente, via-te seguir o destino dessa espécie de Citizen Kane que, já o disse, fantasiava em ti, agora derrotado não na política, mas pela baixa política. Tu, que tanto gostavas de Fellini, estavas em vias de devir uma patética e dramática personagem felliniana!
Mas desse doloroso colapso saíste são e salvo, embora apoquentado, vivo para novas andanças do espírito. E assim sucedeu com os teus mais íntimos parceiros na antiga Morais que, de pronto, encontraram os decisivos caminhos das suas vidas e construíram três dos poucos oásis que hoje há em Portugal: o Pedro, juntando o ser admirável poeta (que já era) com o devir administrador da Gulbenkian; o João, ensaiando aí a sua vocação de grande senhor do cinema e, depois, na Cinemateca, para o resto da vida, como mágico escritor, organizador e intérprete de filmes (nos dois sentidos da palavra; a Helena, que agora trouxeras para animar o Centro Nacional de Cultura (de que julgo teres sido um dos fundadores), com o seu dote de empreendedora visionária, desenvolveu aí a multímoda acção cultural que ainda hoje o CNC cumpre; só o Escada soçobrava numa miséria em que criava, porém, uma bela obra de pintura...
Na minha memória de ti, há então um longo lapso, cada um de nós enfronhado no seu campo de acção. Até que, no fim dos anos oitenta, se proporcionou termos um útil e agradável convívio. Foi quando tu dirigias uma comissão para proposta de subsídios a artistas com dificuldades económicas, criada na Secretaria Geral da Cultura; e, por morte do João de Freitas Branco, me convidaste para o substituir na área da música. Além de ti, a comissão era composta por pessoas de trato ameno e estimulante, que eu já conhecia. Recordo-me de Lima de Freitas, de Luís de Pina, de Lopo de Carvalho e de Francisco António Alçada Padez (marido de uma prima minha). Além da consciência de praticarmos uma boa obra, havia sempre ocasião para conversas do maior interesse sobre coisas de cultura. Foi porém uma experiência breve porque veio Santana Lopes e acabou com a comissão.
Mas então via-te mais vezes, em tua casa (nos arredores do Bairro Alto) ou pelas bandas do Príncipe Real, perto de onde eu vivia e vivo. E quando isso acontecia eram, para mim, festivos momentos de felicidade. Lá estava aquele teu sorriso, já aqui falado, que porém se ia tornando cada vez menos matreiro e mais melancólico: mas que sempre se abria numa palavra imprevista e provocativa. Lembro-me que me falavas das coisas de cá, já desiludido, e, mais animado, das frequentações que de há muito entretinhas no Brasil, onde eu fora há pouco pela primeira vez e viera extasiado. Lembro-me de ter brincado contigo por causa do amável lapsus calami de Jorge Amado, n’O Sumiço da Santa, onde chamara a outro «meu caro Alçada Baptista»! E coisas assim...
Até que, nos últimos anos, deixei de te ver, na orla do Príncipe Real ou no Centro Nacional de Cultura, tão teu e meu querido. E as últimas memórias que de ti conservo ciosamente, mais nítidas com a vizinhança dos tempos, foram marcando uma considerável mudança progressiva, que muito me entristece. Eu pensava que tinhas boas razões para estar feliz, por seres quem és, pela obra feita e pela vida vivida, cheia, arriscada, empenhada, muitas vezes excitante. Disseste-me que tinhas comprado uma quinta nos arredores saloios de Lisboa, e que lá vivias retirado, meditabundo e triste, à maneira de Herculano em Vale de Lobos. Sempre foste para mim um homem de surpresas, mas esta é das mais surpreendentes. De grande glutão das nourritures terrestres, tornaste-te um daqueles ascetas do deserto, desenganado das ilusões e vaidades mundanas. Em verdade, é um destino grandioso e trágico como o de João Baptista... E pensei no que dizia Jean Cocteau, se não me engano: «Certaines époques mettent leurs grands hommes en mauvaise posture»...
Eu também ando desanimado com o estado a que isto chegou, cá e lá fora. Tivemos sonhos lindos que estão em vias de volver-se pesadelos... Mas também reparo que, neste mundo de contrastes e como na parábola do trigo e do joio, além das coisas feíssimas, são tantas as belíssimas – e tu sabes fazê-las como poucos. Nos meus dias de fantasia, penso que o melhor e o pior que por aí acontece já prepara e prefigura o tempos escatológicos anunciados no Apocalipse de João, com seus avatares miríficos, quando «a figura deste mundo passará». Já lobrigo sinais da vinda da Grande Besta «de dez chifres e sete cabeças», cavalgada pela «grande prostituta» e lançada «na perseguição» dessoutra «Mulher vestida de sol, com a Lua debaixo dos pés e coroada de doze estrelas na cabeça», para «lhe devorar o filho», etc., etc... E, muito ao longe, vejo formar-se «um novo Céu e uma nova Terra» e «descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém, já preparada, como noiva enfeitada para o seu esposo» – numa eternidade feliz que a fé nos promete, em que todos os belos sonhos nossos, antigos e modernos, se tornarão realidade.
Entretanto, que bom seria se esta prova de apreço dos muitos amigos e admiradores teus te desse ganas de voltar ao nosso convívio, hoje empobrecido pela tua ausência.
Teu também amigo, admirador, muito obrigado, etc., etc.,
Sidónio de Freitas Branco Paes
Lisboa, 13 de Outubro de 2006