Soltando um daqueles ditos de espírito ou máximas de jovial sabedoria em que é perito, o António Alçada Baptista disse-me uma vez, já não sei a propósito de quem, e por estas mesmas palavras, que o tal fulano de quem se falava tinha uma qualidade preciosa: punha todos os seus defeitos à mostra. De início surpreendido com a novidade provocadora da afirmação, cedo percebi o seu alcance e o que de verdadeiro – e até cómodo! – ela continha.
Queria o António dizer na sua que, se todos nós somos naturalmente uma mistura inextricável de qualidades e defeitos, temos uma humaníssima propensão para pôr em evidência as primeiras e disfarçar o mais que podemos as segundas. Deste modo, quem nos aborda pela primeira vez – ou mesmo pela segunda... – é facilmente enganado pelo favorável quadro de nós mesmos que lhe apresentamos, e só depois, em sucessivas aproximações, vai descobrindo, em sucessivas desilusões, o lado menos lisonjeiro que instintivamente lhe havíamos ocultado.
Mas algumas pessoas há que, contrariando essa tendência natural, e até sem qualquer esforço da sua parte, imediatamente começam por expor, por desvelar aos seus interlocutores minimamente perspicazes, sem defesas nem autocomplacências, aquilo que outros prefeririam dissimular, isto é, os aspectos menos positivos ou menos brilhantes da sua personalidade. E muitas vezes, até, essas mesmas pessoas, não contentes com a exposição da nudez das suas «mazelas», acabam por mascarar, por codificar, por tornar dificilmente detectáveis os recônditos tesouros das suas qualidades.
Não levei muito tempo a perceber que o meu amigo António era precisamente uma dessas pessoas que ele tão bem definira.
O amigo é evidentemente aquele que, se bem que com maior ou menor clarividência, ama o outro como um todo, como amálgama que é de um sem-fim de características físicas, morais, intelectuais, de veemências, quebras, gestos, impassibilidades, tiques; e foi assim que eu fui sendo amigo do António, sem curar muito de distinguir, de valorizar ou desvalorizar em especial cada uma dessas componentes. Mas o amigo, além de olhos, tem ouvidos, e não pode furtar-se ao que a maledicência lhe diz do outro: os chamados «defeitos».
O que eu percebi então foi que aquilo que alguns, pelo menos não tão amigos do António como eu, dele diziam era afinal o desapiedado retrato que o António de si mesmo pintava. Todas as cruas limitações que lhe aplicavam – inconsequente galanteador, fútil conversador de salão, sei lá o quê -, ele mesmo as envergava num exagero de máscara, remetendo para umas profundidades que só a verdadeira amizade podia descobrir o filão inesgotável da sua generosidade desmedida.
Aquilo que do António ficará será, sem dúvida, aquilo que ele directamente fez - os livros que escreveu e os livros cuja publicação sonhou e tornou possível com sacrifícios que só quem neles o acompanhou pode imaginar; mas será também aquilo que aos outros, aos próximos amigos, propôs que fizessem e ajudou a fazer. Criador de literatura e criador de epopeia, o António é também – e quase me atrevo a dizer que é isto o mais importante – como que um criador desmultiplicado da literatura e das epopeias que outros directamente fizeram. Isso mesmo: criador de amigos.
Não exclusivamente, mas sobretudo, daqueles amigos que souberam a tempo descobrir por trás do tal auto-retrato desapiedado mas faceto que pintou a inesgotável bondade e a grandeza de alma com que no mundo foi exprimindo a sua peregrinação interior.
Julho de 2006
Pedro Tamen