Os Projectos
A coragem de uma dádiva serena
Pedro Roseta

António Alçada Baptista não é apenas uma personalidade excepcional e exemplar. É um homem do essencial. Manteve e mantém sempre, com coerência absoluta, uma grande fidelidade ao que considera essencial, aceitando o empenhamento que daí decorre e as dúvidas e enganos ocasionais próprios da condição humana.
Nasceu numa sociedade arcaica, provinciana e fechada ao mundo, traumatizada pelas perseguições religiosas da I República e assustada pelo medo do comunismo. A inércia era nela um dos suportes da desordem estabelecida, profundamente injusta, que mais tarde retratou nos seus escritos.
A burguesia provinciana julgava que poderia manter para sempre os seus privilégios e o mundo estático em que vivia. Cada um ia tratando da sua “vida”, reduzida à manutenção de rendimentos regulares ou, na sua falta, à obtenção de um emprego vitalício e à procriação e educação dos futuros herdeiros. Tudo banhado num cristianismo truncado que estava longe de impregnar a vida da mensagem do Evangelho. É verdade que algumas pessoas, sobretudo mulheres, tentavam compensar em parte a dureza da situação vivida através de relações afectivas fortes e carinhosas com as crianças e de uma ajuda aos pobres, que constituíam a maior parte da população e que eram atingidos por carências hoje difíceis de imaginar. Mas nada de fundamental parecia possível mudar, designadamente devido à ditadura retrógrada que impunha o imobilismo político e social.

António Alçada, pelo contrário, levou a sério o essencial do cristianismo. Os Padres Alves Correia e Abel Varzim, D. António Ferreira Gomes, entre outros, tinham mostrado o que deveria ser uma vivência plena da referida mensagem e os riscos a ela inerentes. Também ele cedo descobriu que o tipo de sociedade na qual gostaria de viver “estava longe da sociedade em que vivia”. Queria uma sociedade na qual a todos fosse assegurada “a satisfação das necessidades elementares: a alimentação, a habitação, a educação, a saúde, a segurança, os meios que asseguram aquilo a que se pode chamar a justiça social e são condicionantes do desenvolvimento da pessoa”, nada disto podendo ser conquistado “à custa das liberdades básicas essenciais”.

Era advogado quando descobriu o pensamento de Emmanuel Mounier, fundador da revista “Esprit”. Desde então empenhou-se com grande coragem e persistência numa intervenção “intelectual e cívica a partir de um catolicismo aberto e interventor”.
Na JUC e na JOC, bem como noutros organismos da Acção Católica, tinham-se formado jovens católicos com idênticas preocupações, no primeiro caso apoiados no fecundo magistério do Padre Dr. António dos Reis Rodrigues. Também Adérito Sedas Nunes, João Salgueiro, João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Alberto Vaz da Silva, entre outros, queriam uma sociedade mais livre, mais justa e mais humana, tendo-a defendido nas páginas do jornal dos universitários católicos “Encontro”.
Muitos deles empenharam-se nas iniciativas lançadas por António Alçada Baptista. Mas foi este quem tudo arriscou. Deixou a sua profissão, investiu todo o dinheiro pessoal que tinha nesse tempo e ainda assumiu muitos compromissos para além dele na aventura da Moraes, editora comprada em 1958. Criou e dirigiu durante seis anos a revista “O Tempo e o Modo”, proporcionou o lançamento entre nós da prestigiada revista internacional “Concilium”, excelentemente dirigida por Helena Vaz da Silva e foi um dos fundadores da Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias. Foi possível obter o apoio da Association Internationale pour la Liberté de la Culture para muitas acções que visavam a liberdade cultural e o intercâmbio com outros países.

A Moraes editou, sobretudo na colecção “Círculo do Humanismo Cristão”, muitos filósofos e escritores, bem como os teólogos decisivos na preparação do Concílio Vaticano II, então reconhecidos na Europa livre e na América mas quase desconhecidos em Portugal.

Foi extremamente importante a colaboração que promoveu entre católicos e não católicos, entre estes Mário Soares, Salgado Zenha e Jorge Sampaio, sobretudo na revista que dirigiu. Foi muito significativa a escolha dos coordenadores dessa publicação, duas personalidades diferentes mas ambas brilhantes, João Bénard da Costa e Vasco Pulido Valente.

Na área cultural foi quebrado o domínio exercido pelos seguidores do regime e pelos companheiros de caminho do PCP. Apesar da arbitrariedade brutal da censura, das iniciativas de António Alçada resultaram espaços de liberdade e criatividade de extrema importância. E as colecções “Círculo de Poesia”, “Círculo de Prosa”, “O Tempo e o Modo”, “Hoje e Amanhã”, “Temas e Problemas”, “Actualidade Portuguesa” permitiram a expressão livre de autores portugueses não arregimentados por aquelas duas visões maniqueístas.

Não se pode esquecer o que era Portugal na ditadura salazarista. Apesar de algum crescimento económico verificado nos anos 50 e 60, Portugal era, como salientou Adérito Sedas Nunes1, quase sempre o último ou o penúltimo de todos os países da Europa não dominada pela União Soviética, incluindo a Turquia e a Jugoslávia, nas taxas de escolarização, de mortalidade infantil ou peri-natal, nas capitações diárias de calorias e de proteínas, no consumo de carne e leite, na relação entre médicos e número de habitantes. A emigração era o último recurso para muitos que não podiam suportar tal situação.

Conheci o horror dos “bairros de lata” devido ao trabalho nos organismos de intervenção social da Igreja. Sabia como se sobrevivia nas “ilhas” do Porto e nas zonas rurais do interior. Lembro-me do choque tremendo que sofreram milhares de estudantes quando, por ocasião das inundações ocorridas em 1966, que causaram centenas de mortes, foram ajudar as populações atingidas por iniciativa das Associações de Estudantes e da JUC, ao descobrir, siderados, como se vivia e morria às portas de Lisboa.

A falta de liberdade era igualmente intolerável para António Alçada, tanto mais que sempre a considerou “o sector mais importante do processo humano”. Sem ela “nada de duradouro é possível realizar”.

Tudo isto o levou a ser o primeiro católico, juntamente com Francisco Lino Neto, a candidatar-se contra o regime nas eleições de 1961, depois de ter sentido a necessidade de manter contactos e de agir com a oposição tradicional. Deste modo alertou muitas consciências  então adormecidas, sobretudo entre os católicos portugueses.

Acreditou na possibilidade de uma liberalização e transformação pacíficas do regime numa democracia após a subida ao poder de Marcello Caetano, animado pelo empenhamento vigoroso dos seus amigos José Guilherme de Melo e Castro e José Pedro Pinto Leite, sem esquecer vários outros como Francisco Sá Carneiro.
Era indispensável tentar a mudança e provar que o regime provavelmente não aceitaria a reforma, a qual poderia ter evitado os custos de uma revolução. O fracasso dessa tentativa “não diminui antes amplia a força (...) da atitude moral” dos que a levaram a cabo, como António Alçada afirmou a propósito de Pinto Leite. No entanto, isto não o impediu de se candidatar de novo pela oposição em 1969.
Em 1972 foi forçado a vender a Moraes perante a falta de solidariedade da camada da sociedade portuguesa a que se dirigia, com excepção do apoio de alguns amigos.

Penso que António Alçada Baptista subvalorizou sempre a importância da influência real que as suas iniciativas tiveram em várias camadas da comunidade nacional, incluindo nos oficiais do quadro e milicianos que depois fizeram o 25 de Abril. Não esqueço que delas também eu muito beneficiei.
António Alçada fez o que em Portugal era impensável, excepto nos casos de ingresso em congregações religiosas. Diferentemente daqueles que, aliás em casos raros sempre de louvar, doavam ou legavam parte dos seus bens no fim da vida, ele deu tudo antes dos quarenta anos.

Para mim, isto significa que se deu a si próprio aos portugueses. O Cardeal Cerejeira disse-lhe: “Você tem de sobra o que falta a Salazar: o amor ao próximo.” Repetiu-me isto mais tarde, sublinhando que o considerava um dos cristãos portugueses mais conscientes daquele tempo. E fez o contraponto com o ditador. Entendia que este tinha deixado que a sua personalidade se corrompesse, certamente não pelo dinheiro, mas sim pelo exercício solitário de um poder sem limites.

Depois de 25 de Abril de 1974 António Alçada podia ter ocupado cargos políticos, partidários ou não, de grande relevância. O despojamento que tivera em relação ao dinheiro manifestou-o então em relação ao poder. Para si a política não visava nem o triunfo individual, essa “paixão infantil 2, nem a procura de vitórias partidárias, por certo necessárias, mas tantas vezes inconsequentes. O lado instrumental da política, a luta pela conquista e conservação do poder, não o interessou. Escreveu mais tarde: Rio-me quando penso que grande parte das pessoas estavam convencidas de que eu tinha aspirações políticas. Como homem do essencial teve sempre por objectivo da acção política o que é fundamental: a promoção da liberdade, da dignidade da pessoa humana e do bem-estar de todos.

Devem ser recordadas as suas constantes intervenções ao longo do processo revolucionário, designadamente na comunicação social, em defesa da liberdade então seriamente ameaçada. Também foram importantes o apoio que deu quer aos dirigentes das principais forças que defendiam a liberdade, quer ao enquadramento democrático de uma parte importante do espectro político, designadamente dos que se identificavam com a democracia cristã. Não pode também ser esquecido o notável trabalho que mais tarde realizou à frente do Instituto do Livro então criado.
Tornou-se entretanto um escritor muito apreciado. O sucesso dos seus livros deu a conhecer a sua personalidade, a riqueza da sua cultura e a profundidade da sua reflexão, bem como o seu talento na criação literária, a muitos portugueses e habitantes dos países lusófonos. Lembro-me bem do seu esforço constante chamando a atenção para a importância crucial desses povos irmãos e trabalhando no reforço dos laços que a eles nos unem. Não me esqueço como me encantava ouvi-lo falar deles, em especial do Brasil e de Cabo Verde, nem do prestígio que António Alçada neles alcançou.

Penso que António Alçada Baptista fez um retrato verdadeiro do seu percurso: “Julgo que sou talvez um ser que se foi fazendo metido numa história pessoal, cercado de várias e complexas circunstâncias, criado num mundo de hábitos e valores que ainda estão longe daquilo que sinto a promessa e que nada mais me resta que amar os outros. E que isto só pode ser feito com liberdade”.

Deste modo mostra ter a clara consciência de que estamos num estádio intermédio, referindo São João: “Aquilo que somos ainda não aconteceu”.  Entende que estamos ainda muito afastados da realização do projecto humano de que longinquamente se pressentem os contornos. Isto explica a persistência da sua caminhada visando um mundo diferente e bem melhor. Essa caminhada contribuiu para o enriquecimento de uma personalidade cada vez mais fascinante, que sabe aliar a inteligência ao respeito pelos outros, a coragem à serenidade e a generosidade à sabedoria.
Considero por tudo isto indiscutível a relevância do contributo de António Alçada Baptista para as grandes mudanças verificadas em Portugal. A sua pátria é hoje, passadas algumas décadas muito diferente do país que ele conheceu. A liberdade, o respeito pelos direitos fundamentais, o aumento do nível e da esperança média de vida, do acesso aos cuidados de saúde, ao ensino, aos bens de consumo corrente e às novas tecnologias da informação, a integração na União Europeia e a abertura ao mundo transformaram Portugal. Apesar da pobreza em que vive cerca de um quinto da população, do mau funcionamento da justiça, das confusões na educação, das insuficientes produtividade e competitividade da economia e da obsessão por acontecimentos efémeros que domina a vida de grande parte dos portugueses, outros destacam-se na ciência, nas artes, em iniciativas inovadoras nos domínios económico e social, enquanto ainda outros se dedicam à promoção do desenvolvimento, dentro e fora do país, no voluntariado, em organizações religiosas ou outras. Também a sua cidade natal, a Covilhã, mudou tanto que já pouco se parece com a que inspirou muitos textos de António Alçada.

No entanto, tudo isto é insuficiente. A pré-decadência em que boa parte dos países europeus se encontra (e não todo o “Ocidente”, como alguns erradamente pretendem) interpela-nos sobre o modo de evitar que entremos num processo de decadência irreversível. O problema demográfico é extremamente grave. Também não podem ser ignoradas as questões axiológicas e éticas. Novas tentações populistas vão aparecendo pela Europa fora, tendo raízes no infantilismo reinante e na imaturidade de grande parte dos adultos, os quais parecem querer tudo ao mesmo tempo, incluindo “comer o bolo e ficar com o dinheiro”, como dizem os ingleses. Querendo tudo e o seu contrário, proclama-se uma liberdade ilimitada mas impõe-se o que se julga ser “politicamente correcto”, lançando as sementes de novas e informais formas de censura, que começam a ameaçar as próprias liberdades de expressão e criação. Deseja-se uma sociedade rica, competitiva e segura, mas quase ninguém aceita os custos necessários para a sua defesa e a sua segurança. Diz-se querer o bem e o bom, mas os media dão visibilidade esmagadora ao mal e ao mau, sem esquecer o fútil e o anedótico. Pretende-se garantir a segurança social, mas reduz-se muito o número dos membros das gerações seguintes e não se aceitam ou não se integram os imigrantes que podem ajudar a suportá-la. Proclama-se a importância vital de um ambiente são, mas muitos não querem agir em consequência no dia a dia. Defende-se a paz no mundo, mas pratica-se o proteccionismo e pouco se faz para o desenvolvimento dos países mais pobres, antes se pactuando com ávidas camadas dirigentes. Deseja-se a excelência, mas quase todas as instituições de ensino superior nem de longe se aproximam das norte-americanas.

Parece dominar de novo a visão binária, sempre empobrecedora, dos que tudo pensam a preto e branco. É bom exemplo a dicotomia entre um estatismo imobilista que não quer mudar um Estado-providência impossível de manter devido ao envelhecimento da população e um ultra-liberalismo que agrava as injustiças e não é aceitável nem suportável. Outro é a divisão simplista entre optimistas e pessimistas, desmobilizando ambos aliás o esforço a fazer.

A coragem serena que António Alçada sempre tem mostrado e a forma exemplar como afirma os valores essenciais podem ajudar a encontrar um caminho alternativo para superar a situação actual. Edgar Morin assinalou que “o futuro é gerado pelo imprevisível.” Afirmando sempre a liberdade como condição sine qua non, António Alçada insiste no dever de manter a esperança, indispensável para desencadear mudanças que, a prazo, invertam as tendências actuais. Julgo que é possível encontrar nestes termos saída para os problemas actuais.

É no entanto indispensável que, como pensa António Alçada Baptista, as sociedades se alicercem na responsabilidade política, económica, ética e ambiental de cada pessoa. “Se retirarmos ao cidadão a sua capacidade de iniciativa e intervenção, conferindo ao Estado o monopólio da resolução das tarefas colectivas, não nos podemos admirar que a actividade (...) dos indivíduos fique reduzida à lamúria das reivindicações”.

Insiste finalmente na necessidade de as sociedades saberem preservar as diferenças que as enriquecem e de, para além de serem produtivas, serem solidárias e afectuosas (“De tudo o que a gente vive, o que vale a pena vem do lado dos afectos”).

Como bem mostra o passado, não subsistirão no futuro as sociedades que, mesmo sendo eficazes na economia, percam o sentido. E, de um modo especial, o sentido dos valores, do afecto e do sagrado. Há que começar a mudar urgentemente as sociedades desencantadas da Europa, zangadas consigo próprias, maltusianas, que querem ignorar ou mesmo apagar as suas raízes matriciais e levar ao extremo auto-críticas quase masoquistas. Cada pessoa deve fazer tudo o que puder para as levar a procurar, com os países dos outros continentes, soluções para os desequilíbrios mundiais e para impedir o triunfo das novas formas de totalitarismo transpersonalista que despontam.

Em conclusão, lembro que o tempo, que corrige as ilusões, acaba sempre por dar a medida da verdadeira importância dos homens e dos factos. António Alçada lembrou muitas vezes Borges: “Todos estamos condenados ao esquecimento.”. Marco Aurélio escreveu o mesmo há perto de mil e novecentos anos...

A verdade é que, na escala das décadas e ainda mais dos séculos, são votados ao esquecimento os que se afirmam pela arrogância, pelos efeitos de anúncio inconsequentes, pela gritaria mediática e pelo triunfo sobre os outros. Pelo contrário, são valorizados quer os que, como António Alçada, contribuem desinteressadamente pela reflexão e pela acção para o bem das comunidades humanas, para a valorização e felicidade das pessoas concretas do seu tempo e para o advento de sociedades melhores, quer os que se destacam no avanço do pensamento, na ciência, nas artes e nas letras, entre eles também António Alçada Baptista.
  Aqueles que quiserem e se souberem inspirar na mensagem inscrita na vida e na obra de António Alçada Baptista, promovendo valores permanentes como a dignidade humana, a liberdade, a justiça, “o amor, a  amizade, a paz, a tranquilidade, a serenidade,” que são “objectivos dignos do ser humano”, não deixarão de se juntar a tantos de nós na grande admiração e na imensa gratidão que lhe dedicamos.

Pedro Roseta

Nota: Os textos citados cujo autor não é referido são de António Alçada Baptista.


1 Ver “Sociologia e Ideologia do Desenvolvimento”, Moraes, 1969

2Em política, a ambição individual é uma paixão infantil,” afirmação atribuída a Charles de Gaulle, bem como a outras personalidades