Sou suspeito ao escrever sobre António Alçada Baptista. Conhecemo-nos no final dos anos cinquenta, jovens advogados, em Lisboa, mais empenhados ambos na política e na cultura do que na nossa comum profissão. Apesar de termos formações familiares e políticas quase diametralmente diferentes e de os nossos círculos de amigos serem também diversos, bem como as nossas preocupações imediatas, encontrámo-nos na galáxia da Candidatura de Humberto Delgado e tornámo-nos amigos. Amigos a sério, não simplesmente conhecidos ou companheiros de uma determinada conjuntura passageira.
A nossa amizade ter-se-á reforçado quando nos convidou, ao Francisco Zenha e a mim, para participarmos na aventura de O Tempo e o Modo na sua primeira fase, entre 1963 e 1969. Alçada era então proprietário da Livraria e Editora Moraes, onde começaria a publicar as revistas O Tempo e o Modo e Concilium e assumia-se como católico progressista (como então nós o classificávamos e ao seu grupo mais próximo) aproveitando os ventos propícios que sopravam do Concílio Vaticano II - de abertura, diálogo e aceitação das ideias progressistas - que contrastavam fortemente com a rigidez dogmática, intransigente e liberticida da ditadura salazarista, no plano católico e integrista.
Zenha e eu, agnósticos e herdeiros de uma tradição republicana e anti-clerical, considerámos o convite do Alçada um tanto insólito, mas aceitámo-lo sem hesitações, apesar dos nossos mais próximos camaradas dessa época, como Fernando Piteira Santos, Manuel Mendes, Gustavo Soromenho, Ramos da Costa e alguns mais o terem considerado com desconfiança e mesmo alguma hostilidade. Curiosamente, a reacção dos amigos de Alçada, quando lhes anunciou o convite que nos fizera - João Bénard da Costa, Nuno Bragança, Pedro Tamen e por aí - foi de grande perplexidade. Alguém propôs então - como saberíamos muito depois - que antes de votarem rezassem um padre nosso para que melhor se inspirassem. A sugestão foi acolhida, assim fizeram e a votação franqueou-nos as portas de O Tempo e o Modo...
Eram assim os tempos difíceis e tacanhos da primeira metade da década de sessenta em Portugal, quando o movimento anti-colonial começava a tornar-se avassalador e se multiplicavam os sinais, para quem os soubesse entender, de que uma profunda revolução nas mentalidades, nos comportamentos e nos costumes estava em marcha, irresistivelmente.
A nossa colaboração no Tempo e o Modo - e as reuniões que semanalmente fazíamos, com bravas discussões estéticas, ideológicas e inevitavelmente políticas - aproximou-nos imenso. Foi então que consolidei uma sólida e fraterna amizade com Alçada Baptista, porque para além das diferenças referidas, interesses comuns e modos de estar e conceber a vida nos aproximaram.
António Alçada Baptista foi uma figura essencial do catolicismo progressista, que ajudou a tornar clara a divisão da Igreja em relação à ditadura salazarista. Houve precursores como Ferreira da Costa e João Sá da Costa, animados nos anos post-guerra, pela acção dos Padres irmãos Alves Correia e, mais tarde, obviamente o Bispo do Porto e todo o seu grupo bem como, em Lisboa, o Padre Felicidade Alves e alguns outros. Mas no plano intelectual e mesmo político foi Alçada, com as ligações que estabeleceu em Itália e em França, Lino Neto e o casal Sophia de Mello Breyner - Francisco Sousa Tavares que mais contribuíram para esse grande movimento progressista católico, que criou uma dinâmica própria e faria um rombo sério na credibilidade externa e interna da Ditadura.
A segunda metade dos anos sessenta foram muito importantes para Alçada Baptista. Arruinou-se na sua Editora, viveu intensamente o Maio de 1968 e fez a sua Peregrinação Interior - título altamente simbólico - que publicaria em 1971 e o consagraria como um grande escritor. Até aí tinha publicado ensaios, crónicas e artigos que fizeram dele um intelectual respeitado. Mas é a partir de 1971, com a Peregrinação Interior I, que se torna um escritor, na plena acepção da palavra, com um estilo próprio, com uma experiência para contar e uma mensagem original a transmitir. São os anos em que conviveu mais com Alexandre O'Neil e Nuno Bragança, com inúmeros brasileiros ilustres, como Jorge Amado, entre muitos outros, e com Jean-Marie Domenach, Edgar Morin (ao qual um dia, há mais de quarenta anos, me apresentou, em Paris) e muitos intelectuais e artistas franceses e italianos.
Foram anos em que as vicissitudes políticas a que fui sujeito, até à queda de Salazar, ao advento de Marcelo Caetano e ao meu regresso de S. Tomé obrigaram, pela força das circunstâncias, que as nossas relações, se interrompessem. E tenho muita pena, porque foram anos verdadeiramente transformadores e decisivos.
Quando em fins de 1968 regressei a Lisboa, voltei ao convívio de Alçada Baptista. Verifiquei logo que acreditava na chamada primavera marcelista, amigo como era de Marcelo Caetano, seu antigo professor e meu também. As eleições de 1969 foram, no entanto, uma farsa, um desastre para as Oposições e uma pseudo consagração para o regime. Porque, unanimemente, não foram consideradas eleições sérias. Nem em Portugal nem, sobretudo, na Europa.
Voltámos a encontrar-nos em Paris: eu, já então no exílio, ele numa das suas viagens regulares à capital que ainda era e se considerava - mas já contestada - o centro do mundo. Alçada procurou-me, com a amizade e cordialidade de sempre. Encontrámo-nos no Café de La Paix, à beira da Ópera. Alçada tinha acabado de publicar um livro de diálogo - uma longa entrevista - com Marcelo Caetano. Ofereceu-me o livro, que eu aliás já tinha lido. Disse-lhe francamente, que não tinha gostado nada. Foi uma conversa penosa, embora cordial. Disse a Alçada uma brutalidade, de que depois me arrependi. Disse-lhe que ele iria passar à história - com aquele livro - como o António Ferro de Salazar. Não aconteceu assim, felizmente. O livro teve pouquíssima repercussão...
Serviu, no entanto, para logo a seguir à Revolução dos Cravos, alguns falsos amigos o acusarem de colaboracionismo com o regime. O que me pareceu extremamente injusto. Desde o meu regresso a Portugal, multipliquei os gestos para que se tornasse claro que considerava Alçada um democrata e um católico sincero que muito contribuíra para o desgaste do regime e, portanto, para abrir o caminho para a democracia. Ele foi sensível à minha atitude naquele especial momento. Tanto mais que contrastava com a de alguns outros, mais próximos dele, alguns que lhe deviam muito...
Desde então, tornámos mais próxima a nossa amizade. Enquanto estive na Presidência da República trabalhou estreitamente comigo nomeadamente na organização das cerimónias do 10 de Junho. Mas também em muitas outras iniciativas no plano cultural.
Entretanto, Alçada Baptista publicou vários livros de grande qualidade: Os Nós e os Laços, O Riso de Deus, Tia Susana, meu Amor, para só citar aqueles que me vêm à memória e mais me marcaram. Afinou uma escrita subtil, inconfundível, ganhando leitores fiéis para os seus romances, como é próprio dos grande escritores.
Alçada Baptista, como escritor, intelectual e interventor cívico tornou-se uma personalidade inconfundível das últimas décadas do século XX português e da transição do Milénio. Mas além disso, é um contador de histórias incomparável, uma figura humana excepcional e um amigo exemplar. Ainda tem muito tempo à sua frente - são os meus votos - para que nos possa deixar muitas das suas deliciosas histórias, que nos tem para contar...
Lisboa, 9 de Novembro de 2006