Quando eu era dos “grupos de casais”, aí pelos anos 60 do século passado (quem se lembra ainda do Anneau d’Or?), conhecia o António Alçada de nome e ouvia, um pouco incrédula, as alusões aos seus comportamentos na política e no amor. O António era, para muitos de nós ligeiramente mais novos e frequentando outros “grupos”, alguém que defendia as causas em que acreditava, fossem elas concretizadas nos perseguidos pela expressão livre das suas convicções políticas, ou nos que sentiam a necessidade de amar em liberdade. A lenda que se tinha tecido em torno do António emprestava-lhe, aos meus olhos, um sabor especial: ele era aquele “senhor” que tinha criado uma editora e fundado uma revista, O Tempo e o Modo, e através delas tinha contribuído para que algumas pessoas se permitissem pensar e viver em liberdade.
Quando a primavera marcelista se começava a esboroar chegou o dia 25 de Abril de 1974 – o tal dia que o António afirma “nem todos terem a consciência da importância que teve para a sociedade portuguesa”. Nesse ano o David Mourão Ferreira era o director d’A Capital. O António escrevia umas crónicas sobre o apaziguamento interior exigido por esse momento histórico e, na página ao lado, eu defendia, vibrante, a vida universitária que pretendíamos transformar com o nosso querer. Um dia encontrámo-nos à saída do jornal e o António deu-me uma boleia até casa. E desde então até hoje ficámos ligados de amizade.
Nesse tempo que parece já longínquo, o António tinha um estúdio na Rua Cecílio de Sousa, ao pé da Escola Politécnica, mas vivia quase sempre numa linda casa oitocentista bordada de azulejos, na parte da quinta da Penha Longa que confina com os Capuchos de Sintra. Cultivava girassóis e cozinhava ‘pasta carbonara’. Os filhos vinham muitas vezes, sobretudo o Pedro, o Luís e a Marta. Ao fim de semana, duas vezes por mês, ia à feira de S. Pedro em Sintra e comprava sementes, ervas de cheiro e, por vezes, uma peça bonita – embora já tivesse muitas de um gosto arte nova que sempre lhe conheci. No Inverno acendia as lareiras dos muitos quartos da casa, e dizia que uma coisa fundamental na vida era saber acender um foguinho de portas a dentro.
Lá para o fim de 74 começaram a chegar do estrangeiro, sobretudo de Paris, os amigos que tinham deixado Portugal para não sufocarem de opressão. Vinham vê-
-lo, às vezes ficavam uns dias, queriam saber o que pensava, como iam correr as coisas, queriam fazer parte do futuro risonho que vibrava no ar. Tal como o António, os amigos entraram mais tarde nesse futuro com tudo o que ele tem de risonho e de difícil, de construção e desconstrução, de esperança e desespero. Mas como o António sabe, de um saber antigo, que não existe outra possibilidade senão a de sermos nós a construir o futuro, mantém constante aquela tranquilidade de quem está para além das pequenas e quotidianas expectativas.
Mais tarde, o António teve outro estúdio, ali para a Bica, com uma vista magnífica, as estantes a entornarem-se de livros e, aqui e ali, umas belezas de arte nova. Dali saíram livros sentidos, vividos e encomendados às almas dos seus leitores. Ali, também, aprendi a admirar o Mário de Andrade do Macunaíma, o Guimarães Rosa desse inesquecível conto “A terceira margem do rio”, a literatura de um país onde existe o “grupo dos amigos do António Alçada”, esse Brasil que o fez vibrar pela alegria e pelo amor saboreado ao sol. Ali, nesse canto da Lisboa ribeirinha, muitas conversas iluminaram os corações, muitas pessoas se encontraram consigo. Discussões ideológicas e políticas, quantas existiram e de que me lembro!... Hoje todos nos aproximamos um pouco, porque, quando a vida não ensina a tolerância, é porque nada soubemos aprender.
E assim continua o António, no nº1 da R. de S. Marçal, a transmitir-nos a mesma tranquilidade e uma particular conciliação com o que podemos e sabemos fazer da nossa vida, um sentimento que não é mais do que a conciliação connosco próprios, comunicado por alguém que se sente conciliado consigo. O António ensinou-me muita coisa mas, sobretudo, ensinou-me a ternura e a paz e, mesmo sem os seus escritos, somente com as suas palavras, o António Alçada ocupa um lugar singular na vida dos que o amam.
Lisboa, 30 de Outubro de 2006
Maria Helena Mira Mateus