Os Projectos
Interrogação e liberdade: Peregrinação Interior I,
de António Alçada Baptista
Maria das Graças Moreira de Sá

Peregrinação Interior I – Reflexões sobre Deus, estreia literária de António Alçada Baptista, datada de 1971, começa por ser o testemunho da vivência emotiva e intelectual de um “eu” em busca de uma unidade interior que eternamente se constrói na relação multímoda que, ao longo da vida, foi estabelecendo com Deus, ou melhor, como afirma o narrador, com o que lhe ensinaram a chamar Deus. Que esta obra pretende constituir-se, antes de mais, como testemunho prova-o a consonância entre as palavras finais do volume e as epígrafes que o abrem. De Fernão Mendes Pinto, que inaugura o escrito, escolhe o autor a passagem em que este dá graças a Deus por ter-lhe conservado a vida, para que “pudesse fazer esta rude & tosca escritura, q. por erança” deixa a seus filhos, e para que “tomem os homes motiuo de se não desanimarem cos trabalhos da vida para deixarem de fazer o q.devem, porque não há nenhus, por grandes que sejam, com q. não possa a natureza humana, ajudada do fauor divino…”1. E depois de passar, a abrir o primeiro capítulo, pela inscrição de uma citação de Jung, na qual se afirma a procura da Verdade que recomeça com cada um, fecha assim o caminho percorrido ao longo da obra: “Se a Verdade for conseguida no fim dos tempos, creio que o fim dos tempos ainda muito demorará, mas se no fim da minha vida eu puder verificar que deixei os meus filhos num ponto mais adiante do grande caminho, que o fiz com verdade imediata, com justiça, com amor e com respeito pela sua liberdade, eu talvez seja capaz de estar sereno e entrar confiante no seio do mistério de que nesse dia me darão a chave” (p.218). É, de resto, um testemunho que pretende ser exemplar no sentido de, simultaneamente, dar conta de uma experiência pessoal e poder ser também entendido como símbolo da geração que atravessa os anos 50 e 60. Disso parece estar consciente Alçada Baptista, que confessa num inquérito levado a cabo por Cecília Barreira: “A minha experiência pode ter alguma importância porque coincide com o início da presença do catolicismo na Oposição ao antigo regime”2. E mais à frente: “Não sei os motivos que levaram alguns católicos a demarcar-se da posição tradicional da Igreja, mas acho que o meu caso pode ser um indicativo do que se pode ter passado com outros”3.

Para além de se constituir como testemunho, Peregrinação Interior – Reflexões sobre Deus é uma obra de difícil classificação, inovadora de uma nova época da prosa portuguesa4, prosa de memória, ensaio e diário5, onde se conjugam o memorialismo e o ensaísmo, ambos fruto da constante atitude interrogativa do sujeito, único sentido, para ele, da verdadeira liberdade. Vários traços autobiográficos marcam o texto, em que os verbos “lembrar” ou “relembrar”, conjugados na primeira pessoa do singular, e que remetem para a infância e adolescência do “eu” que se exprime, convivem com outros, de foro reflexivo, como “pensar”, “repensar” e, mais importante ainda, e com o mesmo alcance, como o verbo “sentir”, também recorrente como forma de apreensão intuitiva do real e da tal verdade que nas coisas anda.

O sentido de uma obra que tem como título uma viagem por dentro de si mesmo, com caminhos diferenciados e momentos de paragem situados sempre num círculo concêntrico e interiorizado, lugar sagrado e, também ele, de devoção, e como subtítulo a palavra “reflexão”, dentro da temática da relação do mistério do homem com o mistério de Deus, inicia-se com o próprio acto de escrita, entendido este já como um acto de libertação interior (p. 20), autêntica “aventura de descobridor” (p.25), onde anda de “picareta a esgravatar o interior das coisas” (p.25). Pela escrita se liberta, assim – porque através dela se interroga –, de um percurso pessoal, dividido entre o sentimento e a razão, e também de um percurso comum, o da, como refere, “grande neurose colectiva em que estamos todos metidos” (p. 21), que é a da “comunidade frustrada e impotente” (p.21), e a de este “’meio ser-se’ como só se é neste país” (p.21).

Como se conciliam, pois, a memória das origens e as reflexões sobre temas tão diversos como, entre outros, a Igreja (tema obsessivo), o medo, a culpa, a autoridade, a pobreza, a sociedade capitalista, a utopia? É o próprio Alçada Baptista quem fornece a resposta: “Creio que a minha expressão literária terá que começar assim, por um memorial interior, onde o que me ensinaram a chamar Deus polarizou efectivamente os meus grandes problemas e as minhas grandes motivações e, foi a partir daí, como as pequenas ondas que partem de uma pedra atirada ao lago, que atingi ideias, coisas e pessoas” (p.23). Compreende-se, pois, a importância da memória selectiva na construção do sujeito. É numa infância cheia de afectos na casa da avó e das tias (inseridas numa burguesia provinciana meio rural, meio letrada que era, na época, a grande fonte do poder em Portugal6), onde o sagrado (a que chamavam Deus) se infiltrava em imagens, actos, linguagem, leituras e sons que o “eu” infantil moldou uma certa ideia de Deus, a qual, mesmo que ficcionada, marcou, para sempre, uma vivência plena de amor. A imagem do tio António é quase uma metonímia dessa vivência do sagrado: severo, austero e exigente, como o sujeito imaginava Deus, dava-lhe, “depois de limpar os bigodes da sopa, repetidos beijos, ternos e sonoros” (p.63).

É esta ternura, bebida na infância, pelo ser humano, já notada pelos críticos7, e que perpassa em todas as páginas da obra, que explica, em primeiro lugar, o facto de as primeiras interrogações acerca da existência de Deus, ocorridas no Colégio de Santo Tirso, não terem acarretado um corte abrupto com o divino e, em segundo lugar, a imensa humanidade que se adivinha nos vários ensaios religiosos, sociais e económicos presentes na obra, onde a interrogação é sempre caminho de liberdade. Diz Alçada Baptista: “Sinto que a procura séria de Deus passa necessariamente pela interrogação e pela liberdade e descobri que ter Fé é interrogar livremente o imenso mistério de Deus” (p.50, sublinhado meu). É por essa constante interrogação livre e libertadora que o “eu” que se expressa diz ter passado de religioso por educação a religioso por opção (p.53), o que é já viver em plena liberdade. A percepção de uma Igreja fechada sobre si mesma, esmagada sob o peso dos seus dogmas, ligada à burguesia de origem do autor mas insensível ao valor da liberdade quer pessoal, quer colectiva, no processo evolutivo das sociedades e dos povos, causou-lhe uma certa “incomodidade” que o levará, num dado momento, a pensar que as linhas de libertação, do progresso interior, do conhecimento, da procura da Verdade estavam a ser conduzidas por não católicos. Daí a originalidade e a dificuldade da posição que assume nesta obra: estar dentro, mas fora. Como Eduardo Lourenço salienta, tínhamos ensaios de católicos e de não católicos que são, em geral, ex-católicos, mas “Faltava-nos qualquer coisa de vivido do interior, a odisseia espiritual e humana de um católico entre mil outros, atento ao mistério dessa Igreja de que se confessa filho e capaz de falar da sua experiência de “marginal” dentro dela, com uma sã desenvoltura, não pouco humor, e singular penetração da atmosfera “pré-histórica” da nossa existência social católica”8.

Ora, é esta mesma atitude interrogativa que preside a todas as matérias que Alçada Baptista toca nesta obra nuclear do seu pensamento, já que, no início e no fim de tudo, está o seu fascínio pelo mistério do homem, e sondá-lo, em qualquer dos aspectos em que este seja considerado, é sondar-se, a si e ao seu eterno desassossego. Os pequenos ensaios insertos neste volume do autor, tenham eles um cunho religioso, social ou económico (onde é visível a sua recusa de uma perspectiva materialista na evolução sócio-económica) falam, no fundo, essencialmente do mesmo – do mistério do homem, da sua natureza, do seu destino. E da sua grande arma, a interrogação, e do seu grande objectivo, a liberdade. É deste modo que, entre o discurso da memória e o  ensaístico, podemos ler, a certa altura: “Perante a estrutura ética, perante a estrutura cívica, perante a estrutura religiosa, perante a estrutura psicológica, perante a estrutura económica, procuramos muito mais a comodidade e a segurança do que a interrogação. Interrogação que é conhecimento, que é pôr em questão, que é imaginação e descoberta e que, com tudo isto, é caminho de verdade e liberdade” (p.65).         

Interrogação e liberdade – eis a lição de vida, sem palavras de mestre, proposta por Alçada Baptista para todos os campos que envolvem a acção do homem, construída apenas pela sua vivência interior, como a segunda epígrafe da obra, retirada de Montaigne, deixa adivinhar: “Je n’enseigne pas, je raconte” (p.7). A reiteração, nas últimas páginas, de expressões como “É preciso”, “É necessário” transporta-nos  para o sonho de um mundo melhor, um sonho que, pela literatura, se torna legado de todos nós: “Gostaria de viver numa comunidade onde em grande espírito de verdade, simplicidade, liberdade e amor, fosse capaz de pôr em comum e participar de interrogações e experiências, no diálogo com o mistério que é o estofo do homem, do mundo e de Deus” (p.211).


1 Fernam Mendez Pinto, Peregrinaçam, citado por Alçada Baptista, Peregrinação I – Reflexões sobre Deus, Lisboa, Editorial Presença, 1999, p. 7. Para todas as citações desta obra de Alçada Baptista será utilizada esta edição e a indicação das páginas será feita no corpo do texto.

2 Cecília Barreira, Confidências de Mulheres, Anos 50-60, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p.41.

3Ibidem.

4 Cf. Manuel Poppe, Temas de Literatura Viva – 35 Escritores Contemporâneos, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982, pp.55-61.

5 Cf. Eduardo Lourenço, “Literatura e Interioridade – A propósito de ‘Peregrinação Interior’ de António Alçada Baptista”, in O Canto do Signo (1957-1993), Lisboa, Editorial Presença, 1994, p. 155.

6 Cf. Cecília Barreira, op. cit., p.41.

7 Cf. Cremilde de Araújo Medina, Viagem à Literatura Portuguesa Contemporânea, Lisboa-Rio, Nórdica, 1983, pp.543-552.

8 Eduardo Lourenço, op.cit., p.155.