De novo, pouco mais poderemos dizer do que a nossa própria vida, seja ela medíocre, gloriosa ou banal.
De como a autora confessa admirar o escritor António Alçada Batista pela coragem de falar de si sem esquecer o lugar de onde veio nem “deitar fora os talheres de prata”. De como agradece que lhe tenha mostrado um Deus que ri e feito ver que a única batalha que vale a pena é a de tentar que os laços não se transformem em nós.
Peregrinação interior
Conheci o António Alçada Batista no Brasil. Foi no consulado de Portugal no Rio de Janeiro, no lançamento do Riso de Deus. Depois disso escrevemo-nos algumas vezes, almoçamos em Lisboa, vimo-nos em feiras do livro e pouco mais. Entretanto sinto com o António, quando estou com ele e ao ler o que escreve, uma grande intimidade. Não acho que esta sensação se possa explicar por pertencermos a uma mesma classe social ou por termos tido uma educação parecida no que toca à relação com “Deus”. Acho que o que nos aproxima é antes uma certa tendência à dissidência ou à “marginalidade”, uma forma de estar na vida “em permanente busca”, sem ceder a certezas absolutas, sem acomodação aos lugares, sem deslumbramentos com o poder. Sei como isto pode ser confundido com distanciamento ou cepticismo, mas acho que ambos sabemos da sensação de liberdade e de trabalho que implica.
Depois gostamos os dois do Brasil, este país onde o corpo está sempre presente e a língua nos dá a sensação de um tempo distendido, com espaço para a doçura. Aí tínhamos uma amiga comum, a Leonor Xavier, para nós uma presença essencial no Rio de Janeiro enquanto aqui viveu. Para o António pela companhia; para mim por me ter mostrado um Rio de Janeiro para além da colónia portuguesa; apresentado ao colégio dos meus filhos; mostrado que era possível ser carioca sem deixar de ser portuguesa.
Quando me convidaram para escrever este texto reli Peregrinação interior. Sempre achei que neste livro António Alçada Batista encontra o tom ensaístico presente em toda a obra, mesmo na ficção, o que me lembra Caetano Veloso quando diz: “Todas as minhas canções são autobiográficas, mesmo as que não são”.
Mais uma vez espantei-me com a actualidade do livro! Se pensarmos que o primeiro volume foi escrito em 1971 quando o autor tinha 43 anos e o 2º. em 1982 quando tinha 55, isto pode ser entendido como crítica ou elogio. Eu diria que é uma mistura dos dois: um elogio ao autor por mostrar que os problemas do “ser” são fundamentalmente os mesmos, o que faz de Peregrinação interior um clássico da literatura portuguesa; uma crítica a nós portugueses por termos de reconhecer que muitas das observações que aí se fazem são ainda pertinentes. Seria aliás interessante comparar esta peregrinação com o livro de José Gil “Portugal hoje: o medo de existir”. Embora escrito num registro não pessoal, sem abordar a relação com a transcendência, Portugal hoje tem em comum com a Peregrinação interior a análise da mentalidade portuguesa além da crítica ao nosso medo de arriscar.
Há 40 anos atrás, conta Alçada Batista, a burguesia modificava a religião mas não era modificada por ela. Prolongava um regime político que a privilegiava, alimentava a ignorância das classes inferiores e ajudava os pobres que ela mesmo criava, tudo como forma de alimentar a sua caridade, tudo devidamente explicado pelas escolhas de deus! Hoje, na volta das convicções religiosas em Portugal, seja aos rituais do catolicismo ou às religiões alternativas, penso se em muitos casos não estaremos a repetir a tendência de entregar nas mãos de deus o que está nas nossas fazer ou não. Fazer estas críticas nos anos setenta, em plena ditadura apoiada pela igreja, numa sociedade de corpo interditado como a portuguesa, exige coragem! Bem sei que nisto o António Alçada Batista não estava inteiramente sozinho, tinha do seu lado um grupo de amigos “católicos progressistas” como ele, mas também sei que se “semear é junto, capinar é sozinho” como diz Guimarães Rosa.
A Peregrinação interior é no fundo o princípio de uma longa reflexão, que continua nos seus outros livros, sobre a vida, o mistério, a amizade, o amor feita a partir de uma convicção: o nosso modelo de civilização está esgotado, temos de inventar outro. Esta invenção, por sua vez, pressupõe mudanças: novas formas de relação com a transcendência ou “Deus”; legitimação do corpo como espaço individual de criação de sentido; valorização dos afetos acima dos valores da ciência ou das ideologias.
Transformar o deus castigador num deus que está do nosso lado, seja esse deus uma entidade ou o nome que damos à “ordem secreta das coisas”, é uma ideia que só pode ter quem não carrega consigo o peso da culpa. Defender a verdade do corpo, por outro lado, não só valoriza a nossa singularidade como nos responsabiliza por ela, além de desmistificar completamente a idéia de que somos todos iguais. Acreditar que os afetos estão acima das ideologias impede que os nossos sentimentos sejam previamente moldados e permite que guardem o seu mistério.
Não sei se algum dia vou conseguir viver de acordo com estas utopias, abandonar as guerrilhas no amor, transformá-lo em encontro e estado de bem aventurança. Só sei que gostaria de.
Madalena Vaz Pinto