Conheci o António Alçada Baptista, como que por acaso, no início dos anos 60, em casa de uma amiga minha. Lembro-me de ter ficado surpreendida por encontrar de forma tão inesperada o director da revista O Tempo e o Modo, cujos primeiros exemplares eu possuía e eram objecto de troca de ideias, num pequeno grupo de amigos que se interessavam pelas coisas da cultura.
Naquela tarde, o António fez-se anunciar e, entrando na sala com um enorme volume de livros e paginas soltas debaixo do braço, pousou um dossier sobre a mesa. “Estão a ver? Tudo isto foi revisto e cortado pela censura!” Falava da revista de que era director. Impressionou-me a sua bonomia, o seu humor e a serenidade que demonstrava face as dificuldades impostas por um regime político em que não existia liberdade de expressão.
Durante anos, nunca mais o vi, mas não deixei de acompanhar a sua obra literária. O tempo, todavia, encarregou-se de nos aproximar. Em finais dos anos 80, convidei-o para cronista principal da Máxima, uma revista que surgia num verdadeiro deserto de publicações para o público feminino.A amizade que , já naquela época me unia ao António, permitia-me partilhar as minhas dificuldades e alegrias em torno deste projecto. Dai que eu sentisse, cada vez mais , ser ele o escritor certo para integrar uma revista feminina.
Como num filme, revejo, hoje, as páginas das suas crónicas e evoco o papel enriquecedor das suas memórias e das suas narrativas, das suas pequenas histórias cheias de humor, das suas reflexões sobre temas, ao mesmo tempo tão simples e tão complexos, como, entre outros, o amor, a paixão, o casamento, a amizade, a alegria de viver, ou a relação com a transcendência. Para mim e, estou certa, para a grande maioria das leitoras da Máxima, as crónicas do António, publicadas ao longo de cerca de catorze anos, permitiram fecundar muitas ideias e, muitas vezes, ultrapassar as conversas mais vazias do nosso quotidiano. Quer isto dizer que com o António Alçada – como muitas vezes é carinhosamente apelidado pelos amigos - não há conversas banais. Tal como nos seus livros, ele é memorialista e reflexivo, exteriorizando as suas emoções e afectos, sublinhando vezes sem conta — e penso que esta será uma das facetas mais interessantes da sua personalidade —Identificar-se com o lado feminino do mundo.
Em Os Nós e os Laços, creio que o seu primeiro romance, publicado em 1985, o autor condensa o seu pensamento numa afirmação de Gonçalo, uma das personagens principais da narrativa : “Hoje sinto-me perfeitamente integrado na metade feminina do mundo, parceiro das mulheres em geral e cúmplice das mulheres que amo. Acho que somos muito bem capazes de estarmos no fim das sociedades do poder e que talvez possamos ter uma saída pelas sociedades do afecto e, se isso é assim, os homens não estão a perceber nada do que se está a passar. O que é verdade é que a chamada dialéctica macho-fêmea me passa completamente ao lado. Amo as mulheres através do meu lado feminino.”
Para António Alçada Baptista, o importante é o mundo dos afectos e da ternura que conheceu em criança, através das tias e das criadas com quem foi educado, tal como nos conta na Peregrinação Interior, a sua primeira obra de vulto, de inesquecíveis memórias e reflexões.
É de facto um privilégio poder partilhar essa cumplicidade de reflexões, afectos e ternura. O António costuma dizer como seria bom sermos capazes de viver em comunidade e de sermos capazes de rir, tal como acontece no Brasil e em Africa.
“Normalmente — disse-me numa entrevista, há alguns anos —, olha-se para os africanos como uns seres a quem, nós, os ‘civilizados’, temos que dar ajuda. Ora, eu penso que há valores que eles têm que nós temos de aprender. Um deles é essa capacidade de alegria, essa concepção lúdica da vida, outro é a capacidade de viver comunitariamente. Por exemplo, o Brasil, no fundo, é o português liberto desta tristeza toda a que nos moldaram. Para a gente se entristecer bem basta o sistema e a estrutura em que estamos metidos. Acho que a tristeza é um tique cultural. Quem é que ri? As crianças, os patetas e os pobres. Acho que a alegria de viver deve ser mantida até à morte, mas nós pusemos isso de parte como atitude cultural. Repare: a gente vai a uma boîte na Europa e só vê gente nova. No Brasil, ou em Cabo Verde, os velhos estão a dançar; a festa faz parte do processo humano.”
A vida passa a correr e a cidade afasta-nos uns dos outros. Eu quero continuar a ouvir as pequenas histórias contadas pelo António, com a sua memória prodigiosa, o humor do costume e o sentido das coisas que vale a pena serem ditas.
12 de Setembro de 2006
Madalena Fragoso