Neste tipo de livro opta-se pelo elogio. O que se percebe.
Mas quando se trata de uma pessoa como o António Alçada Baptista, é difícil pela escolha imensa com que a gente se depara.
Decidi-me pela evocação de um episódio passado há mais de dez anos. E decidi-me porque a história realça um traço talvez pouco conhecido. Além de ser picaresco, tão ao gosto da sua fina ironia, mostra como, acima de tudo, o António é um grande senhor.
O activista, o escritor, o cristão, o intelectual, sempre se moveu num cenário de nobreza aristocrática que manifesta nos mais pequenos gestos.
Conheci-o tarde, iniciava eu o caminho inseguro da escrita, início que acontecia, também tarde, já depois dos cinquenta. O António deu-me conselhos preciosos, daqueles que não se aprendem nos manuais nem nos cursos de formação, conselhos que lhe vinham da humildade segura que o caracterizava.
Um dia telefona-me a perguntar se lhe conseguia arranjar uma fotografia antiga que retratasse uma jovem mulher dos anos vinte… bonita, claro!
– É para dar cara à tia Susana.
Referia-se à personagem principal do seu pequeno romance “Tia Susana, meu amor”.
– Vão fazer uma reportagem na revista… (não me lembra o nome) e eu achava engraçado apresentar uma imagem viva aos leitores. Como você tem mexido nos álbuns antigos, talvez consiga encontrar alguma coisa (no meu livro de estreia colocara fotografias de época no início de cada capítulo).
Seleccionei três no rico espólio que reunira e depois escolhemos juntos uma delas. Sem regatear. A tia Susana seria assim, indiscutivelmente: uma mulher lindíssima, segurando distraída entre os dedos as pérolas de um longo colar, uma pequena pluma a encimar-lhe o cabelo, os olhos intensos fitando-nos com ligeiro ar de riso… Em tons de sépia.
Tratava-se da minha avó paterna, ou da sua irmã, ambas desaparecidas há muito.
De missão cumprida, nunca mais me lembrei do assunto.
Até que, passados meses, num almoço de domingo, a minha mãe, excitadíssima, relata o “escândalo”:
Imagine que na semana passada a tia Mité (cunhada do meu pai) estava no cabeleireiro a folhear uma revista e, de repente, reconhece a fotografia da avó Jesus. Imagine! Numa reportagem sobre um livro! O retrato da avó a fazer-se passar por uma tal tia Susana! A avó!!!
Distraída como sou, a milhas de distância, não me sentia minimamente envolvida. Apenas curiosa.
A tia Mité reconheceu-a pelo relógio - continuou a minha mãe em tom dramático. – Não podia haver engano! A Tia ficou com o relógio quando a avó morreu. Mostrou-mo, olhe, está aqui, não há outro igual! Claro que era a avó Jesus! Eu não precisava do relógio para a reconhecer! Tirou aquele retrato em Paris e estava muito bonita. Quem o escolheu até teve bom gosto! Mas é um desplante! É incrível! Não acha? Usar assim uma pessoa?! Por baixo havia uma legenda: “A tia Susana”. O Alçada Baptista usou a fotografia a fingir que era a personagem do livro dele. Imagine!!! A avó Jesus!!! A tia Mité contou que o tio Luís tinha ficado em brasa (o meu pai já morrera e o tio Luís era agora o chefe da família), ele que adorava a mãe! Coitado! Está em fúria total! Usarem a fotografia da mãe para representar uma mulherzinha qualquer… Olhe, logo que a tia desligou, fui comprar o livro e li-o… E ainda fiquei mais indignada, são as poucas-vergonhas do costume! Nem disse nada ao tio Luís, a fúria dele já é tal…
A minha mãe parou para tomar fôlego:
Deve calcular que fiquei passada. A coisa parece tão inacreditável que devia ter uma explicação. Mas não tem. Nenhuma. O que se pergunta logo é como é que raio a fotografia foi parar à revista. Pois é um mistério! Mantém-se um mistério. Logo que soube, o tio Luís pediu a um amigo, que conhece o escritor, para lhe perguntar formalmente como é que o homem tinha arranjado a fotografia.
Eu ia interromper, finalmente percebia o mal-entendido. Mas a minha mãe não me deixou, asseguro-lhes que o fluxo verbal era pior que uma torrente.
Imagine que o Alçada Baptista se recusa a dizer como arranjou o retrato. O tio Luís mandou-lhe um advogado e o homem nada, não se descose. Calado como um rato! Acham que a roubou da casa de alguém e agora tem vergonha de confessar.
Chegado a este ponto já não há retorno! Estou tão ralada, filha! Vai ser um escândalo, e o homem que até parecia uma pessoa civilizada…
Nessa altura dei um berro:
- Ó mãe! Que data de disparates! Fui eu que dei a fotografia ao António Alçada. Eu. Nunca julguei que o tio Luís reagisse assim… Mea culpa!
E a minha mãe a olhar-me horrorizada.
O caso esteve feio.
O tio Luís decidira desafiá-lo para um duelo e já mandara recado para que arranjasse as testemunhas.
E ele calado.
Acabou tudo em bem.
Mas não esqueço o ar sereno do António quando lhe telefonei. Que era uma história de loucos, o que é que lhe tinha dado para não dizer que fora eu a dar-lhe a fotografia? Que loucura!
Não se justificou. Apenas disse que era assim.
Curiosa, insisti:
– E o duelo?
Ele riu:
– Isso resolvia-se. Ninguém ia morrer.
Talvez o conceito de honra já se tenha tornado uma coisa de loucos…
Mas às vezes faz muita falta.
Estoril, 28 de Setembro de 2006
Luísa Beltrão