Li todos os livros do António Alçada Baptista e muitas das suas crónicas, ouvi alguns discursos seus e estive presente em muitas das suas intervenções públicas. Acompanhei o seu pensamento, mantenho-o como ponto firme em alguns capítulos fundamentais da minha formação.
O poder e a liberdade, a intuição e a inteligência, o entendimento não contábil com o mundo em que vivemos, a descrença no trabalho como valor absoluto, foram temas de amplas conversas e horas de reflexão. Guardo a sorte da sua amizade e do seu exemplo, na dimensão cristã das suas relações com os outros. Admiro a integridade que em variadas circunstâncias lhe conheci, pelo convívio muito próximo que mantivemos, desde o primeiro instante.
Não irei escrever apreciações sobre a obra literária de Alçada Baptista. Não vou evocá-lo como intelectual e católico, opositor ao regime, editor da Livraria Moraes, fundador de O Tempo e o Modo, presidente do Instituto Português do Livro. Sobre todos os passos tão sua tão versátil vida, muitas reflexões e imensos testemunhos haverá, no livro agora composto de tantas e tão variadas autorias.
Porque em Agosto de 1981 conheci o António no Rio de Janeiro, onde eu vivia, e porque talvez sobre a sua relação com o Brasil sejam mais escassos os testemunhos, deu-me vontade de procurar as suas passagens pelo país que sempre o acolheu de braços abertos, como se ali uma outra metade de si tivesse de descobrir.
Nessa época, eu mergulhava em pleno nos acontecimentos da cidade, tinha trânsito em diversos circuitos da sociedade brasileira, evoluía entre todo o tipo de pessoas, fácil e abertamente recebia em minha casa tanta gente que vinha ao Rio. O António Alçada terá encontrado nos meus modos aquilo a que chamava o “brasileiro acolhimento que faz de cada homem um irmão, ” enquanto de cada vez, partilhava comigo as suas andanças pela brasilidade.
Assim o vi como mediador nas relações culturais entre Portugal e o Brasil, em circunstâncias de formalidade. E assim lhe conheci os modos de convívio, em vários espaços e casas e cidades brasileiras. A sua leveza de espírito, a graça e o humor, a fluência nas histórias contadas, a habilidade na picardia, o sucesso com as mulheres. O entendimento de um mundo oposto aos rigores europeus da sua matriz intelectual.
Sempre que chegava, António Alçada Baptista afirmava que, para lá da distância que separa Portugal e o Brasil, as suas infinitas afinidades começam na língua comum. Quando o entrevistei para o jornal O Mundo Português, em 1982, disse-me: “A vinda dos portugueses aqui deveria ser gratuita e obrigatória. Se eu não tivesse estado no Brasil há vinte anos, seria francês de cultura, porque a França nos é mais acessível.
Mas teria perdido muito de mim. Hoje, acredito de verdade que a minha pátria é a minha língua. Aqui eu falo português.” Em 1989, exprimia o mesmo pensamento, quando o entrevistei para o Diário de Notícias: “Antes de conhecer o Brasil e de pensar no Brasil, eu era francês, lia e pensava em francês.”
Como escritor, a sua preocupação era que a palavra fosse a comunicação falada da vida. “Gosto da paisagem humana,” disse na Academia Brasileira de Letras, quando em Agosto de 1982 sucedeu a Marcello Caetano na cadeira número um como sócio correspondente da ABL, proposto por Jorge Amado. Nesse mesmo discurso, pronunciou-se sobre as perversidades do poder que pretende traçar linhas de vida, e sobre a liberdade, irrecusável marca de Deus, fundamento de toda a verdadeira felicidade.
Em A Pesca à Linha, evoca as suas leituras de autores brasileiros, e a atracção que já nos anos 40 e 50 sentia pelos seus ambientes de vida e criação, opostos à sisudez dos nossos intelectuais. “Sempre senti do Brasil uma certa chamada,” confessa.
A sua primeira viagem ao Rio deu-se em Agosto de 1961, para preparar a ida das pessoas unidas pelo Pacto e motivadas pelo programa político do Presidente Jânio Quadros, que lhes permitiria mudar de país, para viver em comunidade o projecto intelectual de catolicismo de esquerda, impossível de realizar em Portugal. Essa estadia, que o António várias vezes recordava, permitiu-lhe encontrar os intelectuais brasileiros consagrados, e depois deles, conhecer alguns dos amigos que lhe seriam mais queridos, criativos companheiros de percurso ao longo dos anos.
Pensar e conversar era exercício de alegria com o António, no Brasil. A liberdade na expressão do pensamento, o improviso, o encadeamento de palavras e ideias. “As civilizações do frio vivem na angústia, aqui tem-se a lição da redescoberta dos ritmos do corpo. Lá, as pessoas dramatizam o calor do verão e o frio do Inverno,” disse uma vez em casa de Nazareth, viúva de Odylo Costa Filho, onde sempre se hospedava no Rio.
Porque o António achava que Odylo tinha descoberto o afecto como instrumento do futuro, eu recordo o ambiente daquela casa em que tínhamos o sentimento de pertencer a uma grande família de coração, em que se cumpriam os rituais da amizade, em todas as circunstâncias. E recordo as muitas outras mesas brasileiras em que as refeições eram liturgias sem hora de acabar, amplas rodas de conversa, a arte de transformar os ausentes em presenças quase palpáveis, a invenção da felicidade. “Os portugueses têm vergonha de ser felizes os brasileiros têm vergonha de ser infelizes.”
De Jorge Amado, compadre de Odylo, António Alçada realçou a “visão lúdica e festiva da alegria de viver.” Várias vezes ouvi Zélia Gattai chamar ao António “meu autor predilecto,”com o abraço dos reencontros. Um dia, Zélia falou-me do episódio que os aproximou como “primeiro nó de uma amizade definitiva.” Em 1946, Jorge, deputado comunista pelo PCB á Assembleia Constituinte, recebeu uma carta assinada por dois jovens portugueses. “Não conhecemos o gosto da democracia, não sabemos o que seja a liberdade!” diziam. Da tribuna da Câmara, leu a carta, que não esqueceu.
Mais tarde, há-de recordar esse momento precursor da amizade e do entendimento de espírito que os ligou até ao fim: “Ensaísta brilhante e polémico, António Alçada Baptista ainda não é o romancista que irei ler e amar daí a alguns anos. Mas já o admiro e estimo. Mesmo na discordância de posições e ideias, como não admirar-lhe a escrita cristalina, a seriedade e a cultura de intelectual europeu, como não estimar a flexibilidade quase brasileira, a ânsia de entender e conviver?”
Tanto quanto conviver, o António praticava a arte do encontro entre pessoas, criando afectos e afinidades, descobrindo entendimentos entre portugueses e brasileiros, alargando o sentido de criatividade para além de todas as tecnologias ou ciências exactas de comunicação. Em quaisquer circunstâncias, exprimia essa aristocracia de comportamento que tomou por tema em tantos traços da sua obra literária. Em todos os círculos de pessoas, demonstrava que o afecto pode ser a salvação das sociedades, ele que não recusava a condição de escritor para o futuro, várias vezes por isso citado.
Releio fragmentos de António Alçada Baptista, procuro o seu pensamento, redescubro agora, como desde sempre, o prazer da sua escrita. Em Tecido de Outono : “Amar tem história e geografia, tem espaço e tempo. Se isso não fosse tão insólito, diria que a minha vida devia ser dedicada à descoberta do amor. ” Aqui encontro um entendimento possível para a sua navegação entre Portugal e o Brasil. Tantas histórias, tanta gente, tantos afectos, amizades definitivas.
13 Setembro de 2006