Em Maio de 1992, corria o quarto ano de existência da Máxima, o António Alçada Baptista publicou a sua primeira crónica na nossa revista, a convite da fundadora e então directora, Madalena Fragoso. Em Junho de 2006, o António decidiu que chegara a hora de pôr um ponto final n’O Tempo nas Palavras, título que mantivera ao longo dos anos, tendo a amabilidade de ir pessoalmente comunicar-me a sua decisão.
Agradecendo tudo o que nos revelara e ensinara, resumi então a saudade que já sentia da sua escrita nas páginas da revista num breve balanço de “uma colaboração de longa data que teve a maior importância na definição do espírito da Máxima. Além de ser um exímio contador de histórias, o António Alçada cedo percebeu – muitos anos antes de toda a gente – que o século XXI seria o século das mulheres e que o lado feminino das pessoas e das coisas iria sobrepor-se ao masculino. O tempo veio dar razão às suas palavras!” Dir-se-ia que, anos antes das conclusões da investigação levada a cabo pelo casal Damásio, o António já conhecia bem o importante papel da emoção versus razão e combatia, como ainda combate, o excesso desta nas nossas vidas, privilegiando aquela.
Para além dos seus pensamentos sobre o crescente peso das mulheres na sociedade actual ou sobre as relações entre homens e mulheres ou ainda sobre o complexo binómio masculino/feminino, as leitoras da Máxima tiveram o gosto de “ouvir” o António contar as suas deliciosas histórias, passadas entre amigos e conhecidos – que frequentemente me fizeram sorrir ou soltar gargalhadas – e os seus comoventes relatos de pedaços de vida, própria ou alheia, que nos levaram às lágrimas. E numa época em que as pessoas fazem o culto da juventude e escondem o seu próprio envelhecimento, o António teve a coragem de descrever, na sua crónica mensal, umas férias de Verão na companhia dos filhos em que revelou algumas incapacidades físicas suas, próprias da idade, com a naturalidade de quem sabe saborear a vida – mesmo nos seus momentos mais amargos.
Conheço o António sobretudo através dos seus livros e das suas crónicas. Nos nossos escassos encontros ou telefonemas ao longo dos últimos 18 anos, com a Máxima como pano de fundo, a sua simpatia foi sempre reconfortante.
Lembro-me da primeira vez que lidei directamente com o António, a pedido do Vítor da Cunha Rego, então director do Semanário (pertencia ao mesmo grupo que a Máxima). O António Alçada ia ter uma crónica no jornal, localizada nas páginas dedicadas à Mulher. O crescente trabalho da Madalena Fragoso na Máxima obrigara-a a delegar a coordenação daquelas páginas do Semanário. E delegara em mim. Mas, até àquela data, eu não tivera de lidar com “estrelas” das Letras. A minha insegurança dissipou-se logo ao primeiro contacto, pela disponibilidade e sincera simpatia do António, uma “estrela” muito discreta e especial, que nada tinha a ver com os cometas que pretendiam brilhar nos anos 80 e que não lhe chegavam aos calcanhares…
Não esqueço a sua preciosa colaboração, ao longo de uma década, no Júri do Prémio Máxima de Literatura, a que a Madalena Fragoso então presidia. Na festa de entrega dos Prémios, era sempre ao António que os restantes membros do Júri confiavam a tarefa de discursar sobre as obras distinguidas. E o António, com o seu jeito muito particular, transformava esse momento num dos mais bonitos da noite.
O António, que tudo leu e tudo conhece, que é uma pessoa com mundo, revela sempre uma simplicidade e uma humildade próprias dos grandes. Alheio à feira de vaidades que o rodeia, valoriza o que realmente importa – o amor, os filhos, a amizade, a escrita – sem julgar os outros nem querer impor normas de conduta. Não se leva demasiado a sério, alia o humor ao carinho, e a lucidez a um olhar optimista. As tristezas e os desencantos, tem a elegância de os guardar para si ou de os transformar em aprendizagens que também revertem a favor dos outros. Transmite esperança, confiança e fé na humanidade. Leva-nos a colher a rosa e a deixar os espinhos para trás, como manda uma ária de Handel (da ópera Il Trionfo del Tempo e del Disinganno), de que a Cecilia Bartoli nos deu uma versão magnífica, no ano passado: Lascia la spina, cogli la rosa.
Acima de tudo, penso que o António é um homem livre.
Educado na charneira da culpa, com o peso de uma religião que impediu toda uma geração de apreciar despreocupadamente os prazeres da vida, com o espartilho da censura salazarista e com a imposição de imagens estereotipadas da mulher, o António conseguiu, tal como alguns compagnons de route, ultrapassar tudo e pensar pela sua própria cabeça, agindo de acordo com as suas convicções, intuições e emoções.
Raros são os homens, mesmo nas gerações seguintes, a tratar as mulheres verdadeiramente de igual para igual. Raros são os homens a compreender o que pensam as mulheres e quais as suas motivações. E raros são os homens a saber falar com as mulheres ou sobre as mulheres. O António é uma destas raridades. E não teme o seu lado feminino. Cultiva-o com amor, no dia-a-dia. É por tudo isto que o António Alçada Baptista é um grande homem.
Na qualidade de, sucessivamente, jornalista, chefe de redacção e directora de uma revista feminina que sempre teve o privilégio de contar com a colaboração e o apoio do António, e que tem a honra de o manter no rol dos amigos mais próximos, optei por dar este testemunho no dia em que celebramos o seu aniversário, deixando o comentário sobre os seus livros a outros, seguramente com maior competência para o fazer.
Laura Luzes Torres
23 de Outubro de 2006