“Ó Jorge, já não gostas de mim”. Tinham passado semanas ou porventura meses sem nos vermos.
E era assim que se começava a conversa, por entre sorrisos de sólida amizade. E eu respondia, como que para recuperar o tempo perdido sem ele, “claro que gosto, vamos lá então ver o que por aí há…”. Ficávamos então horas à conversa sobre tudo.
Muitos devem muito ao António Alçada Baptista. Sou um deles e com gosto o digo. Só me atrevo a falar de um ou dois aspectos, essenciais que foram para a vida intelectual e política portuguesa e me serviram também de escola da vida.
Recordo o Alçada - sempre o chamei assim –como candidato da oposição democrática por Castelo Branco, assim como de mais três caminhantes (pelo menos, lembro-me do Domingos Megre e do José Rabaça) e recordo-me bem do excelente manifesto que, para a época, subscreveram. Isso deu alento às hostes tradicionais da oposição, porque “aqueles senhores eram uma novidade e um alargamento do espaço, ainda por cima a partir do interior”.
E não esqueço também o essencial aviso e conselho que me deu, no início da minha vida politica, e bem antes do 25 de Abril: “Jorge, quando fores para uma reunião política, leva sempre um documento escrito sobre o tema em causa. Verás que ninguém leva, e por isso o teu documento e as tuas ideias serão a base da discussão e influenciarão as conclusões”. Estava (continua) cheio de razão, mas não sei se ainda tem paciência para dar estes conselhos.
O Alçada é também, para muitos de nós, o homem chave da livraria Moraes e da criação da Revista “O Tempo e o Modo”. Há certamente quem sobre isto escreva com mais detalhe e sabedoria.
Mas para mim a Moraes, desde a rua da Assunção até ao largo do Picadeiro, era o ponto de encontro da oposição, dos livres pensadores, dos escritores e poetas à procura de editor, do convívio descomprometido. Era o lugar para a partilha dos livros e revistas clandestinas, para se saber o que diziam Jean Marie Domenach e as demais personalidades em torno de Mounier e da revista Esprit. E depois à porta da rua da Assunção estava sempre “o alentejano”, magnífico na sua samarra castanha, a contar anedotas e – como suspeitávamos – a financiar alguma coisa daquilo tudo.
A Moraes, também, é inseparável do livreiro competente, culto afável, que era o Senhor Edmundo, conhecedor de todos os nossos gostos políticos e literários, perito em esconder livros proibidos, testemunha privilegiada e amiga das deambulações oposicionistas dos anos 60.
A revista “O Tempo e o Modo”, aparecida em Janeiro de 1963, foi decisiva no mundo cultural e político português, desde a sua criação até ao seu fim. Foram muitas as relações de força que por causa da revista se viveram, múltiplas as refregas pelo seu domínio e influência, decisiva nos vários debates que se lançaram na vida portuguesa, ferozes os combates ideológicos que a revista albergou. Uma coisa é certa: a revista foi muitíssimo marcante no chamado “ambiente” português; sem ela, algumas – e importantes – coisas das nossas vidas, de tantos de nós em que agora estou a pensar, não teriam sido possíveis. E o nosso “Alçada”, sempre ele, esteve na origem e na criação da Revista, e com ele, bem como o seu património, atravessou o nosso tempo, o tempo de todas as vicissitudes.
O marcelismo, para este nosso Alçada, homem culto, amigo e dialogante, foi uma esperança. Escreveu sobre isso, mas nunca lhe levei a mal pelo facto. Direi que “recuperou” magnificamente e aí esteve ele na democracia portuguesa com a lucidez, a abertura de espírito e também o sentido crítico que este nosso caminho plural sempre recomendou.
Do Alçada escritor – o que foi e é com todo o talento e sabedoria – falarão outros bem melhor de que eu. Só lhe agradeço o prazer que os seus livros, as suas crónicas, as suas histórias me deram, e afinal a todos nós.
E recordo ainda com tristeza, já depois de celebrado um 10 de Junho comigo como Presidente da República, quando recebo o Alçada em Belém para me dizer que “já chega de comemorações” e me solicitava que o dispensasse de futuras responsabilidades na respectiva Comissão. Ostentando a bonomia de sempre, deu os argumentos de uma vida cheia para partir desse modesto cargo. Só podia compreendê-lo. Mas custou-me muito.
António Alçada Baptista: obrigado por tudo!
Lisboa, 14 de Novembro de 2006