Embora não tenha tido o privilégio de um contacto mais continuado com o António Alçada Baptista ou de me incluir entre os seus amigos mais próximos, tive com ele alguns momentos de convívio que, por vezes com sensível significado na minha própria vida, foram suficientes para me aperceber, por experiência directa, da sua largueza de espírito, da sua desprendida afabilidade e mesmo da sua discreta generosidade. Isto para além das suas elevadas e bem conhecidas qualidades como criador literário, como empreendedor cultural, como homem de ideias, como memorialista ou como cidadão bastante interessado na dignificação e na democratização da res publica. Diga-se, desde já, que o António Alçada, no desempenho de algumas dessas actividades e na defesa de algumas dessas causas, não raro sacrificou, e gravemente, tranquilidade e haveres.
Foi por intermédio de Pedro Tamen que conheci pessoalmente o Alçada Baptista. Isto no contexto da entrega, em 1959, do original do meu primeiro livro de poemas, Circulação. Um livro que, por razões de acaso, só viria a público em Setembro do ano seguinte, ou seja alguns meses depois de eu ter feito sair, em breve plaquete com a chancela da revista Notícias do Bloqueio, o poema A Hipérbole na Cidade. Como já se adivinha, a edição de Circulação foi promovida pela casa de que o Alçada era proprietário e principal responsável: a Livraria Moraes Editora, então situada na Rua da Assunção, 49-51, uma editora que tão relevantes serviços prestou à cultura portuguesa. O meu volume, esse, ficou integrado na prestigiosa colecção «Círculo de Poesia», uma colecção que, criada e dirigida por Pedro Tamen, tinha arrancado, dois anos antes, com um belíssimo livro de Jorge de Sena, Fidelidade. Não me posso esquecer da ansiosa expectativa com que parti para esse encontro a três, nem da atmosfera de viva cordialidade que o caracterizou, nem do íntimo regozijo de ver bem encaminhada a publicação dessa minha primeira colectânea poética.
Depois disso, os meus contactos com o autor de Peregrinação Interior reportam-se sobretudo às minhas colaborações em O Tempo e o Modo, revista por si fundada em 1963 e por si dirigida nos seus primeiros anos. Essa revista de pensamento e acção - que, em lugares cimeiros de responsabilidade, contava ainda com as presenças de Pedro Tamen e de João Bénard da Costa (que, embora por um curto período, viria a assumir a direcção em 1969) – teve um papel cultural e até cívico importantíssimo. Nas suas fidelidades espirituais de base como nas suas convergências, nas suas raízes doutrinais (onde geralmente se evocam o exemplo da revista Esprit e as lições de Emmanuel Mounier e de Teillard de Chardin, entre outras), como na sua lúcida abertura às mais diversas correntes e sensibilidades, essa publicação, na sua primeira fase, exerceu uma acção altamente meritória, com largas repercussões não fáceis de avaliar em toda a sua extensão.
Entre esses merecimentos, situam-se, certamente, o de estimular o debate e o espírito crítico, o de impulsionar a livre criatividade, o de combater a intolerância e os dogmatismos, o de aglutinar vontades em torno de certos valores, enfim, o de, a partir de uma diversificada motivação, abrir uma nova frente no combate pela recuperação da plena cidadania e pela instauração das liberdades democráticas no nosso país. Um pouco à maneira – diga-se em à parte, e ressalvadas, claro, as devidas e notórias diferenças - do que se passou com a Seara Nova nos seus melhores tempos. E tudo isto num quadro bastante difícil, dominado quer pelas enormes dificuldades materiais que a revista teve de enfrentar, quer pela ameaçadora e constante presença da Censura e da Polícia Política.
A minha primeira colaboração nessa revista – por sinal sob a forma de resposta a um interessantíssimo e vasto inquérito – reporta-se ao nº. 6 (Junho de 1963), um número especial dedicado ao tema «A arte deverá ter por fim a verdade prática?». Algum tempo depois, no número correspondente a Fevereiro/Março de 1964, fiz aí inserir dois poemas que, alguns anos mais tarde, haveria de incluir em outro livro meu. Seguidamente, entre Abril desse mesmo ano e Outubro de 1967, publiquei em vários números alguns textos de crítica de poesia, respeitantes a livros de, sucessivamente, Gastão Cruz, António Ramos Rosa, Luiza Neto Jorge, Mário Dionísio e António Reis. Por sua vez, e a finalizar, em Abril de 1968, no nº. 59, inteiramente dedicado ao autor de As Evidências, fiz aí incluir o texto «Jorge de Sena e a cultura verdadeira». De que me lembre ou de que tenha registo, foram essas as colaborações que tive o gosto de deixar em O Tempo e o Modo, todas integradas na fase em que António Alçada Baptista dirigia essa publicação.
Fora do âmbito literário em que se situaram esses primeiros contactos com o António Alçada Baptista, tivemos, em anos posteriores, diversos outros encontros. Alguns com carácter fortuito, outros alusivos a lançamentos de livros seus ou a algum assunto relacionado com o Instituto Português do Livro, de que em dada altura foi presidente. Lembro-me, embora não com total precisão quanto a pormenores, de dois desses contactos ocasionais, nascidos em acaso do deambular de cada um de nós pela cidade.
O primeiro deles verificou-se ali para os lados do Chiado, creio que perto da Praça Luís de Camões. Após a efusiva simpatia da sua saudação sucedeu-se uma outra e mais significativa nota de afabilidade: a de me convidar a ir ver uma casa que ele tinha adquirido há pouco tempo. A casa situava-se ali perto, na encosta do bairro da Bica, não muito longe da rua onde funciona o elevador com o mesmo nome. Esta habitação, com porta de entrada ao nível da rua, «foi transformada a partir das instalações de uma antiga serralharia», explicou-me ele, com estas ou com palavras muito semelhantes. Tratava-se de uma residência relativamente estreita, mas muito alongada, a acompanhar o forte declive daquela zona, e portanto a justificar os vários degraus que, de quando em quando, e sempre a descer, era obrigatório transpor. Embora com sinais de estar ocupada há pouco tempo, ou seja, ainda não inteiramente mobilada e decorada, essa casa já tinha um ambiente acolhedor, dentro de uma sobriedade vagamente sombria, quase conventual. «É aqui que medito, que leio, que escrevo, que ocupo as minhas horas de lazer», esclareceu também ele, visivelmente entusiasmado com esse seu novo «refúgio». Na longa sala de estar – e ao mesmo tempo que tomávamos qualquer coisa, não me lembro o quê - cavaqueámos um bocado, sobretudo cavaqueava ele, excelente conversador que era. Não muito tempo depois saímos os dois, passeámos ainda um pouco até à Rua do Loreto e despedimo-nos.
Um outro momento de convívio, também ocasional, teve início já não sei bem onde. Sei que o António Alçada teve o gesto, tão amável quanto espontâneo, de me convidar a almoçar com ele. «Onde é que há-de ser?», surgiu naturalmente a pergunta por ele mesmo feita. Da boca dele saiu igualmente a resposta: «Olhe, vamos ali ao Parque Mayer, a um pequeno restaurante onde se come bem». Esse restaurante, de que não recordo o nome, situava-se numa arejada e verdejante rampa onde havia outros estabelecimentos congéneres. Para além do ambiente calmo e familiar, a sua comida era de facto muito saborosa, muito simples, muito caseira. E a preços módicos, acrescente-se. «Quem gosta muito de vir aqui – esclareceu-me desde logo– é o Jorge Amado, sempre que vem a Lisboa». E rematou. «Eu próprio, já por algumas vezes almocei aqui com ele». Quase escusado será dizer que esse repasto, regado com um jarro de vinho tinto, foi muito agradável, além do mais pelo cativante da simpatia do António Alçada e pela vivacidade (e o colorido) das suas considerações ou do seu descritivo em torno de qualquer assunto ou recordação.
Esses dois encontros casuais, que por motivos evidentes, não poderiam ser esquecidos, corresponderam, de facto, a momentos de calorosa camaradagem, de partilha e de amizade. Eles ajudaram-me a entender melhor a multímoda personalidade e a qualidade humana do autor de Os Nós e os Laços. Homem de cogitações, mas também de afectos; homem sereno, mas também disponível para correr riscos (como aconteceu com as experiências ligadas à editora e à revista de que já falámos); homem de fundas convicções, mas também de inteligência crítica e de tolerância; homem algumas vezes voltado para os voos do imaginário, mas não menos dado à reflexão aturada, problematizante; homem desafectado no trato, mas de grande exigência interior, António Alçada Baptista, merece o apreço, a solidariedade e a gratidão de todos nós.
João Rui de Sousa