Conheci o António Alçada em 1958, tinha ele 31 anos e eu 23.
Numa reunião mais ou menos clandestina, em tempos em que tudo era clandestino, excepto a escancarada "desordem estabelecida", preparava-se delegação portuguesa a um Congresso para a Paz em Estocolmo, coisa de "camaradas" com "bombas boas", mas em que era muito conveniente a presença de católicos de serviço e de gente de outras fés.
Fui com o Pedro Tamen e lá estavam o António Alçada e o Jorge de Sena, que também conheci nesse dia de Julho de 1958, poucos dias antes de eu me casar. Já tinha ouvido falar muito dele. Sabia que era um dos raros (raríssimos) católicos da oposição. Eu era Presidente Geral da JUC (Juventude Universitária Católica) e director do jornal "Encontro" da mesma JUC, de que o Pedro Tamen fora chefe de redacção.
Mas os meus "controladores" da JUC também me murmuravam coisas dele: católico seria, mas não era humilde nem obediente à Igreja e andava em muito más companhias.
O António recebeu-nos de braços abertos. N a luta dele andava muito sozinho (havia o Francisco Lino Neto, o Francisco Sousa Tavares, o José Sebastião da Silva Dias, poucos mais) e o grupo de que o Pedro e eu fazíamos parte podia dar-lhe a companhia que ele tanto desejava. Contou-nos como trocara a advocacia pela vida de livreiro com a compra da Livraria Moraes Editora, até aí especializada em Direito. Tinha planos editoriais que nunca mais acabavam e contava connosco. Foi um "coup de foudre".
Ficámos entusiasmados e ele também. Tão entusiasmado ficou que telefonou ao então Assistente Geral da JUC, Dr. António dos Reis Rodrigues, actual Bispo de Madrassuma, felicitando-o pela geração que formara. Este foi menos entusiasta. Temia aquele encontro entre uma "ovelha tresmalhada" e ovelhas com forte tendência para a "tresmalhação". Falou comigo. Que eu tivesse cuidado. Às vezes os lobos mascaram-se de cordeiros e podíamos ser levados para maus caminhos.
Vãs precauções. Nós – um nós que englobava, além de mim e do Pedro, o Alberto e a Helena Vaz da Silva, o Nuno e a Maria Leonor de Bragança, o M.S. Lourenço, o Luís Sousa Costa, o Cristovam Pavia, o José Escada, o Nuno e a Helena Portas, andávamos à procura de poder continuar o "Encontro", sob forma de uma revista, cujo modelo era a francesa Esprit de Mounier, que o António lia com a mesma paixão com que nós a líamos. Faltava-nos um editor e faltavam-nos as finanças. O António também queria a mesma coisa, mas faltavam-lhe colaboradores. Juntava-se a fome com a vontade de comer.
Quando eu vim da lua-de-mel parisiense, o Pedro Tamen, radiante, disse-me que o António Alçada o convidara para dirigir as futuras edições da Moraes.
Nessa altura, andava eu em mês de desastrada militância, conheci a Zézinha, a mulher do António. As "grandes amizades" alargavam-se. Estava criado um grupo, "a malta".
Lembro-me do António me dar a ler artigos que tentara publicar sobre as Chamas de Budapeste e O Paradoxo Político de Paul Ricoeur. Da JUC fui despedido à francesa. O Bispo do Porto escreveu uma carta. Consumou-se a ruptura entre alguns católicos "jactantes" ("jactância", foi o termo que o Salazar nos aplicou) e o regime. Em 59, o António e alguns de nós assinaram a carta ao Chefe a protestar contra as torturas da Pide e contra o falso cristianismo do estado novo a envelhecer. Começaram-nos a chamar católicos progressistas.
Entretanto começaram as edições da Moraes: "O Circulo do Humanismo Cristão" com traduções de Chesterton, Pascal, Jean Lacroix, Romano Guardini e onde em 60 saiu o livro que escrevi sobre Mounier; "O Tempo e o Modo", com os livros do Padre Manuel Antunes e com O Reino da Estupidez do Jorge de Sena; o "Circulo de Poesia" que abriu com Fidelidade de Jorge de Sena, um dos máximos livros de poesia escritos em português. Visto de hoje, era uma revolução. Nós nem muito revoltados nos sentíamos. Menos do que todos, o António, que nunca quis vestir a pele de herói (nem a de mártir) e que relativizava com humor e nonchalance, tão à maneira dele, os nossos "fervores" e as nossas "loucuras".
Mas todas as grandes ideias foram dele. A revista não foi sonho adiado. Em Janeiro de 1963, surgiu o número 1 de O Tempo e o Modo, com o António como director e eu como chefe de redacção. Com formidável intuição, os artigos de fundo desse primeiro número foram escritos por Mário Soares e por Jorge Sampaio. Quem diria em 1963 que ambos seriam dois futuros Presidentes da República? Talvez o António o intuísse.
Do António foi também a ideia do Pacto, grupo formado por cinco casais (Alçadas, Braganças, Tamens, Vazes da Silva, a Ana Maria e eu) que se comprometiam a uma vida comunitária, a um trabalho comum na Moraes e a ajudarmo-nos em corpo e alma uns aos outros. Foi ainda o António que trouxe para a língua portuguesa a revista internacional Concilium, sob a responsabilidade da Helena Vaz da Silva.
Espantam-se? Eu próprio me espanto quando hoje penso tudo o que o António criou nesses anos 60, e como nunca parou de ter ideias, projectos, de tentar mexer uma sociedade imóvel e apática, muito mais imóvel e apática do que hoje a pintam.
Mas gastou o dinheiro que tinha e que não tinha, e poucos o apoiaram. Ainda – mais uma vez ideia dele – se formou em Portugal a delegação do Congrès (depois Association) pour la Liberté de la Culture, de Pierre Emmanuel e da Roselyne Chenu, que deu alguns francos mas não chegava para tudo.
Quando a década mudou de número, quase tudo isso acabou e, se nós fomos à vida, o António ficou cheio de dívidas, para fugir a uma expressão vernácula que seria particularmente adequada.
Não se deixou abater. Começou então a sua carreira de escritor com as Peregrinações e aí, sim, conheceu o sucesso que faz dele o escritor que é.
Como naquelas histórias dos amigos que se separam nas encruzilhadas, cada um seguiu o seu caminho. O "perigoso" António foi o menos radical de todos nós e até houve quem lhe chamasse nomes feios por altura do 25 de Abril. Nesses tempos, julgou que a sua vocação era seduzir o "charme discreto da burguesia", mas se o charme dele sempre fez milagres, a burguesia só lhe retorquiu com sorriso embevecido mas distante.
Depois, foi Director-Geral no Ministério da Cultura (livros, sempre livros) e depois Administrador da Fundação Oriente. Mas já era, a tempo inteiro, escritor, cronista suavemente implacável deste "país em diminutivo", como lhe chamou Alexandre O'Neill, grande amigo dele.
E poucos nos retrataram tão bem (aos gregos e aos troianos) como ele o fez, sempre contando histórias, sempre arranjando desculpas para as culpas nossas.
Passou por tudo como quem não quer a coisa.
Mas, das melhores coisas destes 80 anos de vida que ele agora completa, só aconteceram porque ele aconteceu. E porque ele quis que acontecessem.
Ele, o António Alçada. Com A grandes.
João Bénard da Costa