Somos um país de longa história e de memórias curtas. Por isso é especialmente gratificante poder-me associar a esta homenagem pública a António Alçada Baptista. Vivendo eu em Londres desde os 22 anos, nunca nos conhecemos tão bem quanto outras circunstâncias teriam permitido. Mas, pelo o número e pela qualidade das amizades comuns que temos mantido, desde há muito me habituei a considerá-lo o amigo que teria podido ser.
Tanto quanto me tem sido dado avaliar, o António Alçada sempre teve a arte de fazer mais do que parece estar a querer fazer. Suspeito que é o seu estilo, talvez uma espécie de pudor. A magnífica Colecção Círculo de Poesia, que criou na Moraes em 1958, era ao tempo um projecto impossível que só alguém desinteressado em ocupar-se com coisas práticas poderia ter realizado. A poesia era então essencialmente marginal, uma expressão da liberdade possível na liberdade reprimida. António Alçada Baptista trouxe a marginalidade para o centro da vida cultural portuguesa, foi um mentor da liberdade em tempo de repressão. Mas suspeito também que, em parte talvez por isso, ele ficava quase inquieto se um livro não dava prejuizo, achando talvez que pudesse ser sintoma de uma escolha errada.
Foi o que fiquei a pensar quando, tendo-se resignado a publicar um livro meu por recomendação amiga do José Cardoso Pires, tempos depois estive com eles numa rápida visita a Lisboa e o António Alçada, com um encolher de ombros não menos resignado, me informou que “olhe, afinal vendeu-se, temos de fazer segunda edição”.
Reencontei-o logo a seguir ao 25 de Abril - tempo de oportunismos pseudo-esquerdistas por parte de quem nunca democrático tinha sido - e havia aquele seu recente livro supostamente marcelista a causar-lhe dissabores. Foi no desaparecido Monte Carlo, ao Saldanha, onde sempre que eu ia a Lisboa me juntava ao grupo residente que se mantinha firme na mesma incontaminada esquerda democrática em que antes havia estado: o José Gomes Ferreira, o Carlos de Oliveira, o Augusto Abelaira, o Herberto Helder, mais alguns. O António Alçada entrou, olhou em volta como se a procurar alguém e, antes que nos pudesse ter visto, logo vários braços o chamaram da nossa mesa e o círculo de cadeiras se alargou com mais uma para ele. Politicamente, ninguém ali tinha alguma coisa a esconder do que tivesse sido ou feito nos tempos da repressão e, por isso, só podia saudar a honesta liberdade também nesses tempos exercida por outros. O que havia sido marginalidade tinha-se tornado para todos em liberdade partilhada.
Se bem me recordo, a melhor contribuição para a conversa foi do António Alçada quando disse que o 25 de Abril era uma óptima oportunidade para se mudar de hino nacional, no mínimo a letra. Também houve quem falasse logo na bandeira, já agora melhorava-se tudo. Mas todos concordámos que aquilo dos egrégios avós e aquela estratégia militar suicida de marchar contra os canhões não eram coisas que se fizessem o povo unido. Mal por mal, antes contra os “britões”, como no original do Ultimato, que ao menos poderia a ser útil para os Portugal-Inglaterra de futebol. Ninguém no PREC lhe deu a devida atenção, o hino ficou como estava, e pronto.
Alguns anos depois houve entre nós um absurdo desentendimento, ambos a querermos a mesma coisa. Eu tinha ido para Secretário de Estado da Cultura no governo de Maria de Lourdes Pintasilgo e o António Alçada Baptista tinha um projecto para a criação do Instituto do Livro. Óptima ideia, é claro, mas considerei que deveria ter uma dimensão mais ampla do que a proposta - por exemplo, integrando uma política de bibliotecas - e não se limitar a pouco mais do que as competências da Direcção de Serviços que então existia. Fiquei à espera, não percebi que ele também tinha ficado, havia uma Lei Orgânica a completar, deu direito a um recado da Primeira Ministra a concordar com ambos: sim, teria sido melhor haver logo mais, mas também sim, era melhor haver logo o que fosse possível para depois poder haver mais. Como de facto depois houve. E assim, mais uma vez, o António Alçada Baptista acabou por conseguir fazer mais do que parecia estar a querer fazer.
Hoje em dia publicamos os nossos livros na mesma editora, a Presença. Neste nosso país de memórias curtas, o António Alçada Baptista tornou-se num contador de histórias de memórias profundas, para o prazer e o benefício de todos nós. Cada vez mais parecido consigo próprio, portanto.