Quando foi necessário redigir o verbete sobre António Alçada Baptista para a Actualização do Dicionário de Literatura (direcção de Jacinto do Prado Coelho; vol. 1, Porto, Figueirinhas, 2002), propus o nome de Fernando Dacosta. Passaram anos; e, após vicissitudes várias, vi-me responsável pela parte portuguesa, além de obrigado a sintetizar vida e obra de quem conhecia, pessoalmente, desde 1980, quando era professor da sua filha Sofia, no Passos Manuel. Escrevi sobre este nascituro na Covilhã (1927):
«Advogado e editor, fundou O Tempo e o Modo (1962), importante revista da década, que congregava a disparidade de vozes oposicionistas ao estadonovismo. Afirma-se, atento, atencioso e digressivo, com Peregrinação Interior (2 vols., 1971, 1983), modelo de cronística reflexiva que há-de contagiar a novelística: Os Nós e os Laços, 1985; Catarina ou o Sabor da Maçã, 1988; Tia Suzana, Meu Amor, 1989; O Tecido do Outono, 1999.
A cumplicidade das mulheres, a ideia de pecado, mas, sobretudo, a decifração da «letra de Deus» – com que abre O Riso de Deus, romance, 1994 –, levam o A. a comungar das angústias íntimas que nos povoam. Do colunismo feliz em A Capital, de que surgiria O Tempo nas Palavras (1973, 2000), aos dias da Beira Baixa e convívio com intelectuais e políticos de vulto (Almada Negreiros, Nemésio, Agostinho da Silva, etc., em A Pesca à Linha. Algumas Memórias, 1998), este assumido burguês de província, sensível ao pecado, deu-nos alguma da melhor prosa conversada hoje tão rara entre nós1.»
Eu acompanhava-o, de facto, desde a juventude: a “Vida de Cristóvão de Oliveira ou ‘Os Enganos Colectivos’”, inaugurando-se n’A Capital em 27 de Outubro de 1971, irmanava-nos num bulício fernão mendes pintino, num certo «destino pícaro» em que nos deveríamos reconhecer, «Muito melhor do que uma concepção épica da vida» (O Riso de Deus, p. 21). Aí, em “Prólogo” dirigido ao reiterado “Leitor Amigo”, à maneira do clássico moralista denunciando funcionários venais, e como Eça e Ramalho cúmplices do director do Diário de Notícias, Eduardo Coelho, naquele mistério sintrense, António Alçada Baptista dirige-se «ao Excelentíssimo Senhor Doutor Manuel José Homem de Mello, advogado, ilustre director do jornal da tarde A Capital, deputado ao Parlamemto Nacional»... Assim reunia gloriosas famílias. Mas, como tanta cronística sua dispersa nas efemerotecas, quem vai recolher devidamente essa presença bondosa de que tantos lucrámos?
Este comportamento de autor entronca numa educação literária precoce, amiúde lembrada, que deve muito à folhetinagem e orientações oitocentescas. Costuma evocar essa dívida: «Eu, nessa altura [aos dez anos], andava muito metido no mundo do Texas Jack e do Salgari.» (Tia Suzana, Meu Amor, p. 53). Em O Riso de Deus, ao sugerir o seu «mundo pequenino», lá vem a aventurosa leitura que seria também de outros (Sebastião da Gama, Franco de Sousa, Manuel Alegre...), agora, acrescentada: «[...] a minha liberdade era apenas imaginada através do galope pelas pradarias, na roda do Texas Jack, ou a singrar pelos veleiros de saque e pilhagem, na equipagem valorosa do Capitão Morgan.» (p. 31)
Com a idade do narrador, a tia Suzana já lera os autores mais em vista: «Os autores que estavam na moda eram a condessa de Ségur, a Maryan, o Jules Verne e o Paul Féval.» (p. 53) Às «audazes e românticas fugas de heroína de folhetim» (p. 14) veio o cinema juntar «o tal solitário do Oeste, que, em cada cidade [...], tem uma mulher cúmplice, cantora de saloon, [...]» (O Riso de Deus, p. 33).
Este interesse de leitor, que conduziu o também editor à «ingenuidade de pensar que toda a gente gostava dos livros de que eu gostava» (A Capital, 1-XI-1972), sobrepôs-se ao escritor dispersivo, concluindo com tristeza, mas não dramatismo, «que o mundo não está à espera da minha prosa» (A Capital, 15-XI-1972). Neste depoimento, em que anuncia vários títulos (em curso de redacção) nunca editados, percebe-se bem quanto houve, igualmente, de autor inacabado.
Ao tempo, julgávamos uns tantos liceais de província, só nos anos 70 despertos para Lisboa e seus políticos, que Alçada Baptista se marcelizara, após ter sido «monárquico tradicionalista» e candidato oposicionista (1969). Enquanto candidato a deputado da Situação por Castelo Branco (1973), dera, todavia, com José Rabaça, uma esclarecedora entrevista a Álvaro Guerra (República, 22-X-1973), em que regularmente convocava a sua bibliografia recente para justificações pessoais. Dávamos o benefício da dúvida por ele trabalhar com o ministro da Educação Nacional, Veiga Simão, que eu mesmo entrevistei em 17-I-1974...
Quando o país assentou, e nos encontrávamos da Rua de São Marçal para cima, o seu bom comércio de estar e seu falar afectuoso veladamente deixavam entender que havia mais escritor – em registo memorialista, sobretudo, e também menos fragmentário do que em 1998 – do que figura de rádio, televisão ou cerimónia oficial; mas que faltava aquele grão dramático que no-lo mostrasse inquieto com a sua obra (uma espécie de expiação da culpa através do sacrifício discursivo), já revendo-se na escassez porém vária de títulos (até ao infantil recente), já completando-se e coligindo-se – o que, repete-se, outrem deveria perfazer.