Riso. Perspicácia. Irreverência. Auto-estima. Charme. Sedução. Inteligência. Modernidade. Estética. São substantivos que o António encarna e os deuses não costumam ser tão generosos. Percebeu com antecipação que o modelo dominante da masculinidade portuguesa era caduco e entedioso. Procurou outras formas de vida e outras formas de pensar. Soube encontrar o lado ridículo das coisas e rir-se de si próprio. Não teme a mudança nem as novas qualidades. Olá António, até logo e até já. Vê lá se te encontras no texto que se segue:
Hoje é Domingo. Dia de descanso. E também, por acaso, dia de eleições para os órgãos do poder local. Do computador que tenho incorporado na parede do meu quarto uma voz informa-me que são 9 horas. Mando o computador calar-se o que ele faz, de imediato. Dirijo-me à cozinha onde o meu marido já tem o café preparado. O pão quente vou buscá-lo à caixa das entregas ao domicílio.
Conversamos sobre política e o que está em jogo nestas eleições. Fazer com que a cidade seja cada vez mais um espaço de beleza, onde o ordenamento do território não seja uma palavra vã - é uma das principais propostas de Isabel Serrano, a candidata que lidera a lista «Estética e Gestão para o bem público». Outro candidato, um homem por acaso, chamado João Beltrão, está particularmente interessado em fomentar intercâmbios no espaço da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. A lista dele chama-se «O conhecimento mútuo favorece a tolerância». Como sempre, vamos votar através da net. O acesso às urnas electrónicas fecha à meia-noite e abriu às seis da manhã.
A nossa neta de 10 anos vai votar pela primeira vez, na categoria de juniores - afinal ela também pensa pela sua cabeça e sobretudo é objecto, protagonista e até pode ser vítima de uma série de políticas mais ou menos insensatas. O professor primário dela (felizmente também teve um educador de infância excelente) costuma dizer que ela já coloca grandes expectativas no seu horizonte e diz que quer viver uma temporada numa estação lunar.
Lembro-me do meu bisavô dizer que em Portugal, no início do século XXI, quem se apresentava às eleições locais eram pessoas dos então chamados partidos políticos, que colocavam a sua paixão partidária à frente de qualquer outro considerando, a não ser que fosse o futebol, com o qual gastavam mais dinheiro do que com a rede escolar. E ainda por cima eram quase todos homens - imagine-se bem que coisa tão absurda - a cidade governada só por homens – que se agarravam aos lugares como umas lapas. Tinham o desplante de dizer que as mulheres só deviam aceder ao poder ‘por mérito’, como se eles lá estivessem por esse motivo.
Foi mesmo necessário introduzir transitoriamente medidas legislativas para obrigar a uma representação paritária de ambos os sexos. Pois até contra isso muitos houve que se movimentaram. Segundo também contava o meu bisavô praguejavam com paixão contra a paridade mulheres/homens na política enquanto parecia nada os preocupar a terrível desprotecção das crianças vítimas de abusos sexuais e outros maus tratos. Aliás, o bisavô António citava repetidamente a frase de Jorge Luís Borges, segundo o qual era de crer num tempo vindouro e certamente mais feliz em que mereceríamos não ter governos. Pelo menos poupava-se ter que os ver todos os dias a pavonearem-se na televisão.
Talvez por isso é que tudo funcionava de uma forma tão desequilibrada - parece que as pessoas chegavam a demorar 1 hora e até 2 para chegaram a uns locais que chamavam emprego, pois nessa altura quase ninguém trabalhava de forma remunerada a partir de casa ou a partir de espaços de actividade próximo de casa. Em vez de se fazerem as compras pela rede ou em lojas perto de casa, as pessoas deslocavam-se a uns armazéns monstruosos com sistemas de ar artificial, chamados hipers. Felizmente já foram todos deitados abaixo. As crianças ficavam horas sem fim na escola ou em salas de tempos livres, e quase que não viam o pai e a mãe durante o dia. Quanto aos velhos - muitos viviam numas casas tristes onde nada faziam excepto embrutecerem-se frente á televisão, esperando a morte, que era geralmente lenta. Os transportes públicos eram tão maus que um número perfeitamente aberrante de pessoas metiam-se em automóveis individuais, que eram altamente poluentes e perigosos, pois para além de andarem depressa demais, em vez de utilizarem água do mar nos motores utilizavam gasolina.
Vamos agora sair para tomar um café na esplanada - e não há nada que chegue ao nosso café - tão diferente de uma mistela que o meu bisavô bebia em Inglaterra e nos Estados Unidos (antes deste país se integrar na União dos Estados da América do Sul e do Norte).
Ao fim do dia vamos à missa. Hoje será celebrada pela Presbítera Manuela Martins, que por acaso até é sobrinha bisneta de um bispo que houve no século passado em Setúbal e de quem muita gente gostava - era o Manuel Martins e era também muito amigo do meu bisavô. Aliás eram às centenas as pessoas que gostavam de dizer: «Eu sou muito amigo/a do António Alçada.» O meu bisavô é que haveria de gostar dela. Transmite uma grande convicção na sua fé e ao mesmo tempo respeita toda a comunidade, que aliás a escolheu como a pessoa indicada para ser ordenada. Além disso tem um marido muito simpático e uns filhos engraçadíssimos. Ainda há poucas presbíteras na nossa terra e é pena pois a mensagem cristã não exclui ninguém, outro ensinamento que o meu bisavô transmitia - impõe apenas a lei do amor - mas foram precisos dois mil anos para que os homens que ocupavam os lugares de topo na hierarquia da instituição-Igreja dessem ouvidos ao Espírito Santo. Uns chatos, ao contrário do meu bisavô que de chato nada tinha.
O meu bisavô contava que havia assim um medo muito grande das mulheres por parte de muitos homens - é claro que hoje em dia ainda há muitos conflitos entre as pessoas, mas a tão falada transformação da intimidade, anunciada pelo grande sociólogo inglês Anthony Giddens, no século XX, tem alterado em muito as relações inter-pessoais. Ao menos agora os homens já não têm que obedecer a estereótipos tão constrangedores. O meu bisavô fartou-se de escrever sobre estes temas numa revista chamada ‘Máxima’. Basta ir à net para ler o que ele pensava e como tanta coisa que ele previa se veio a realizar. Também gosto imenso de reler os livros dele – são peças de outro mundo, plenos de erudição, de visão e de afectos.
O meu bisavô tinha muito graça – um dia convidaram-no para ser secretário de estado da cultura – mas ele recusou dizendo que não tinha jeito para burocracias e que se aceitasse tinha a certeza de que, passado pouco tempo, quem estaria sentado na secretária do secretário de estado seria certamente a sua secretária.
Outra história que ele gostava de contar era a do pai do juiz, a quem um hábil carteirista, (certamente formado num centro especializado, talvez com subsídio da União Europeia) roubou o relógio de bolso no comboio Lisboa-Porto. O juiz mandou convocar os suspeitos do costume e exigiu a devolução rápida do objecto roubado. Passados poucos dias, efectivamente, um dos carteiristas apresentou-se munido do relógio – mas faltava-lhe a corrente em ouro – é que «desejo transmitir ao Senhor Doutor Juiz que a mesma já tinha ido para derreter – mas eu fiz o trajecto Porto-Lisboa e portanto tenho aqui uma série de correntes e Vossa Excelência poderá escolher a que melhor lhe agradar.»
Os ditos do bisavô ficaram célebres e corriam Lisboa, «olha já sabes a última do António?» O António só podia ser o Alçada. Quando alguém lhe perguntou como é que num país tão desorganizado era possível fazer sair tantos jornais diários, especialmente no tempo da morosa impressão tipográfica, como impressão a chumbo quente, ele explicava: «é que em qualquer organização há sempre uma formiguinha, que até pode ser o porteiro ou a telefonista, e que misteriosamente tem o condão de fazer funcionar o imprescindível necessário para que alguma coisa aconteça. Tenho constatado este fenómeno muitas vezes. E podem ter a certeza que essa formiguinha nunca sou eu. Eu só atrapalho.»
É meia-noite e cinco segundos. Vou perguntar ao computador qual a proposta que colheu o maior número de votos na minha cidade. E vou re-ler pela décima quinta vez o livro do meu querido bisavô A Pesca à Linha.