«E nisto vieraõ a parar meus seruiços de vinte & hum annos, nos quais fuy treze vezes catiuo, & dezasseis vendido, por causa dos desauẽturados successos que atras no discurso desta minha tão longa peregrinação largamente deixo contados. Mas inda que isto assi seja, não deixo de entender que ficar eu sem a satisfaçaõ que pretendia por tantos trabalhos & por tantos seruiços procedeo mais da prouidencia diuina que o permitio assi por meus peccados, que de descuydo ou falta algũa que ouuesse em quem por ordem do ceo tinha a seu cargo satisfazerme, porque como eu em todos os Reys deste reyno (que saõ a fonte limpa donde manão as satisfaçoẽs, inda que âs vezes por canos mais affeiçoados que arrezoados) enxerguey sempre hum zelo santo & agradecido, & hum desejo larguissimo & grandioso, não somente para galardoar a quem os serue, mas tambẽ para fazer muytas merces ainda aquem os não serue, daquy se entende claramente que se eu & os outros tão desemparados como eu ficamos sem a satisfaçaõ dos nossos seruiços, foy somente por culpa dos canos & não da fonte, ou antes foy ordem da justiça diuina, em que não pode auer erro, a qual dispoem todas as cousas como lhe milhor parece, & como a nós mais nos cumpre. Pelo qual eu dou muytas graças ao Rey do Ceo que quis que por esta via se cumprisse em mim a sua diuina vontade, & não me queixo dos Reys da terra pois eu não merecy mais por meus grandes peccados.»
Fernão Mendes Pinto, Peregrinaçam, CCVI
Em 1971, António Alçada Baptista publica Peregrinação Interior, percurso através da sua consciência mas também expressão de uma crise mais alargada que os sectores intelectuais viveram nas últimas décadas do fascismo. Ponderam-se valores morais e ideológicos, interrogam-se certezas, a própria natureza de Deus, assim designado por não se encontrar «toponímia melhor na geografia das várias reflexões»1. Trata-se afinal de expor as contradições humanas, notar as relações entre o sagrado e o quotidiano e, sobretudo, as relações do homem com a vida e a morte.
A peregrinação interior metaforiza, assim, a busca de um equilíbrio ideológico e existencial que conjuga uma melancólica tonalidade reflexiva enfatizada por um humor subtil. Este relato de amargas memórias espelha, afinal, os constrangimentos de um tempo de perplexidade social e cultural.
Uma década depois, Alçada Baptista apresenta um livro redentor que responde às fundas incertezas da primeira Peregrinação Interior. Em Peregrinação Interior – II, publicado em 1982, o título acrescenta O Anjo da Esperança, ou reflexões sobre algumas evidências do mundo e alguns esconderijos da alma. Sem abandonar a deambulação íntima, sobrepõe-se uma mudança de tonalidade que expressa o caudal de utopia desfraldado pela jovem democracia portuguesa. Como um rosto de Jano, as duas obras constituem faces inseparáveis que, no entanto, olham o tempo em diferentes direcções e transitam do desespero à esperança.
Apesar da riqueza de sentidos das duas obras, dignas de outros excursos, neste breve apontamento, apenas queremos abordar a explícita relação que estabelecem com o velho relato de Fernão Mendes Pinto e, pelas razões que exporemos, em particular a primeira Peregrinação Interior.
A citação da Peregrinaçam figura como primeira epígrafe tendo sido escolhida a segunda frase do longo trecho que inicia a obra (como nós, da mesma maneira escolhemos o seu final) e resume o memorial nas suas ideias essenciais: (i) Fernão Mendes queixa-se dos trabalhos por que passou, (ii) mas agradece a Deus por lhe ter conservado a vida e a poder relatar para exemplo dos filhos. Ora é esta segunda parte que Peregrinação Interior cita: aquela em que a salvação serve a escrita e a escrita serve a salvação.
O memorial de Alçada Baptista é também um exercício espiritual – a nossa referência à obra de Inácio de Loyola não tem mero valor figurativo o que também se aplica ao relato de Fernão Mendes – propondo um inventário da vida que lhe descubra o sentido e o caminho de Deus. À semelhança da Peregrinaçam, não se trata de uma procura isolada do mundo, mas a descoberta de uma via na amálgama de sucessos e insucessos que a vida desenha. Por isso, os dois memoriais apresentam a forma de relatos em que se desdobram histórias do quotidiano a par de impressões e reflexões.
Para acentuar a glosa da velha relação de viagens, Alçada Baptista imita a imponente portada da Peregrinaçam por meio de um título-resumo que até graficamente se dispõe de forma idêntica:
Peregrinação Interior
ou
Quadros da vida quotidiana numa
sociedade em vias de
desenvolvimento
Reflexões sobre Deus
ou
Fragmentos do memorial do combate
que Jacob Alçada Baptista vem
travando com o anjo que
lhe foi atribuído
Escusado será notar o desdobramento entre autor e personagem, António e Jacob, unidos pela imitação da vida, desavindos no tempo de vida, mas inscritos na mesma página. Universos da ficção que também estão presentes na complexa figura de Fernão Mendes, autor, narrador e personagem. Do mesmo modo, os títulos dos capítulos seguem o modelo da Peregrinaçam, servindo de resumos mas sobretudo expondo o ponto de vista crítico (e quase sempre irónico) do autor. Praticamente todos os casos são exemplificativos:
De como o Autor entrou em Lisboa e nela o mundo lhe apareceu outro, dos grupos onde não quis entrar e de algumas amarguras de que foi sofredor, tamanhas que quase o fizeram assomar à porta de saída de a Fé no Senhor, o que só não aconteceu por múltiplas ordens de razões, umas boas, outras ruins, até que um amanhecer descobriu que, porque tinha dúvida e o jeito de interrogar, tinha Fé, e de como isso o salvou de a castração de seu espírito.2
Como o Autor descobriu, contra o que lhe andava a dizer a bondade igualitária, que os homens não são iguais, e que em suas diferenças residem suas riquezas, donde, a propósito, fala de marginais e de dois, por falecidos, já se atreveu a nomear e que passaram suas vidas sem profissão prevista na tabela das profissões remuneradas pelas estruturas, mas andaram sujeitos a um prato de sopa que o acaso dos homens lhes dava ou lhes negava fora das horas das refeições.3
Se a ironia se espraia até ao explícito humor que parece contrastar com a seriedade do tema, não deixa também de ser ambivalente a imitação da velha relação. O arcaísmo dos títulos amplifica a ironia, ao mesmo tempo que anota os ínvios caminhos da fé, tema também central no relato de Fernão Mendes. Chegamos à questão do efeito de leitura alcançado pela glosa da obra quinhentista.
Em 1971, quando a primeira Peregrinação Interior é publicada, a dominante interpretação da Peregrinaçam encontra esteio na leitura de António José Saraiva que, em diversos textos críticos escritos a partir de final da década de 50, havia insistido na intenção satírica da obra de Fernão Mendes e a sua condição de anti-herói, «um pobre diabo em busca de fortuna, sem vergonha, sem ‘honra’, tremendo de pavor nos perigos, fugindo deles a sete pés, sem outra ambição que não seja sobreviver e enriquecer»4.
Desde a publicação em 1614, a Peregrinaçam havia desafiado a interpretação que progressivamente deixara esbater o tom confessional e moralista do pecador-penitente para sublinhar a torrente de aventuras e estranhos casos. Como vimos, Saraiva entende a figura de Fernão Mendes como inversão do herói camoniano, valente e dominador, e expõe a obra como crítica da ideologia senhorial o que servirá a tese muito difundida da Peregrinaçam como narrativa picaresca. Mesmo tendo havido forte contraposição a esta teoria, a leitura mais comum do relato de Fernão Mendes manteve praticamente indefectível a vertente aventureira e subsumida a reflexão espiritual que a suporta.
Obra maior da literatura portuguesa, a Peregrinaçam afirma-se como texto plural que não esgota sentidos. Porém, a leitura do seu tempo e a sua compreensão como um todo (não apenas a parcialidade das aventuras) encontram nos capítulos de abertura e fecho as proposições que dão coerência ao périplo oriental, surgindo o relato como longa deambulação interior, reflexão construída por meio das atribulações vividas.
Precocemente e em contracorrente, Alçada Baptista recupera e adensa em Peregrinação Interior este sentido esquecido do relato de Fernão Mendes. Se o faz por meio da explícita “peregrinação interior” ou das desvairadas histórias de proveito e exemplo, também o alcança através das epígrafes que junta à epígrafe recortada da Peregrinaçam, ou aos títulos glosados do velho relato. Como a pluralidade de vozes que cruzam o relato quinhentista, também a citação engendra diálogos. A par de Fernão Mendes, o escritor-viajante, cita-se Montaigne, o escritor-imóvel. Nada mais certeiro! Montaigne toma o mundo circundante como impulso essencial para alcançar o sujeito. E insiste na escrita como grande glosa. Um fio de Ariana que une na mesma procura de sentidos as escritas de Fernão Mendes e António Alçada.
2Idem, título capítulo quarto, p.45.
3Idem, título capítulo oitavo, p.87.
4 António José Saraiva, «Fernão Mendes Pinto ou a sátira picaresca da ideologia senhorial», in História da Cultura em Portugal, Lisboa, vol. III, pp.343-492, p.352.