Os Projectos
A Revista Concilium
Joana Lopes

O início da publicação da revista Concilium, em Janeiro de 1965, foi um marco importante na história da Editora Moraes e na evolução dos católicos que depositavam entusiasmos e esperanças nas movimentações conciliares.

A actividade não se reduziu à publicação e à divulgação da revista. Correspondendo a um desejo expressamente manifestado pelos teólogos directores e redactores, foi criado em Portugal um grupo com a missão de assegurar, por um lado, a ligação com a direcção central e, por outro, com os assinantes da edição portuguesa. À direcção central, deveriam ser enviados comentários e sugestões baseados na leitura dos esquemas dos números a publicar (previamente enviados para Portugal) e propostas de temas a abordar no futuro. A relação com os assinantes teria como objectivo dinamizar a leitura e a assimilação dos artigos e viria a concretizar­‑se, fundamentalmente e como veremos, na organização de colóquios tendo como tema os conteúdos da revista.

Nasceram assim os «Amigos da Concilium», um grupo de pessoas convidadas individualmente pelos editores – onze padres ou religiosos e oito leigos – que se reuniram­ pela primeira vez em 31 de Março de 19651.

Existe uma longa acta desta primeira reunião, redigida em francês já que tinha como destinatária a direcção da Concilium na Holanda2.

Na primeira parte da reunião, teceram­‑se muitas críticas aos três primeiros números já publicados. Insistiu­‑se principalmente na complexidade revelada no tratamento dos problemas, a qual alegadamente, os tornaria «inacessíveis e estranhos para a maioria dos leitores». Declarou­‑se ser desejável que os artigos se apresentassem «não só com o mínimo possível de terminologia técnica e de citações em latim, como com uma forma menos estática, menos essencialista». Foram também feitas várias sugestões quanto à apresentação propriamente dita: escolha de títulos mais sugestivos, introdução de subtítulos e de resumos.

Considerou­‑se também desejável que os directores e os autores dos textos estivessem minimamente informados sobre as realidades específicas de cada país, para as terem presentes ao escolherem assuntos e tipos de abordagem.
    Na segunda parte dessa primeira reunião dos «Amigos da Concilium», discutiram­-se as várias formas possíveis de ligação com os assinantes em Portugal – colóquios, grupos de estudo, inquéritos –, tendo­‑se decidido dar prioridade à primeira modalidade. Passou­‑se de imediato ao agendamento, para Maio, de um primeiro colóquio destinado a assinantes e nomeou­‑se uma comissão responsável pela sua organização3. Este primeiro evento veio a concretizar­‑se em 21 de Maio de 1965 e teve como tema A Constituição dogmática da Igreja.

Os colóquios apresentaram­‑se aos assinantes com o objectivo principal de reunir «um grupo de pessoas de boa vontade» que, em conjunto, se esforçariam «por encontrar a verdade refractada nos mil aspectos que uma questão humana sempre tem».

Estava assim lançado um verdadeiro movimento que, durante três anos, mobilizou centenas de pessoas. Julgo não errar pensando que influenciou profundamente algumas delas – antes de mais os membros dos «Amigos da Concilium» que, com grande empenhamento, corresponderam ao dinamismo e à persistência de Helena Vaz da Silva, dedicando muitas horas a actividades e a pesadas leituras. Alguns dos meus exemplares da Concilium estão sublinhados, e com notas à margem, da primeira à última página. E estava longe de ser prosa de leitura fácil!
 
Tipicamente, cada colóquio obedecia ao seguinte esquema: depois de uma Introdução feita por um dos responsáveis pelo evento, realizava­‑se um Trabalho de Grupo com base num questionário enviado previamente a todos os inscritos, com «Sugestões para o Diálogo» e «Indicações Bibliográficas» sobre um tema central. Seguia-se um jantar de convívio, após o qual tinham lugar a Conferência principal e o Debate final4. Tudo somado, longas horas de reflexão e de discussão.

Foram oito os colóquios realizados entre Maio de 1965 e Março de 1968.

Temas, Conferências e Conferencistas:

  • 1º Colóquio (Maio de 1965)
    • Tema: A Constituição dogmática da Igreja
      • Introdução – Pe. José da Felicidade Alves
      • Conferência: Obediência, comunhão e autoridade na Igreja à luz da «Lumen Gentium» – Pe. António Serrão
  • 2º Colóquio (Outubro de 1965)
    • Tema e Conferência: A moral na Igreja em renovação – Frei Mateus Cardoso Peres, O.P.

 

  • 3º Colóquio (Fevereiro de 1966)
    • Tema: A Igreja e o mundo
      • Conferência: A Igreja e o fim dos constantinismos – João Bénard da Costa
      • Conferência: Cristo e o mundo – o cristão e o mundo – Frei Bento Domingues, O.P.
  • 4º Colóquio (Abril de 1966)
    • Tema e Conferência: A dolorosa experiência do Deus oculto – Edward Schillebeeckx

 

  • 5º Colóquio (Junho de 1966)
    • Tema e Conferência: Ateísmo, interpelação do homem moderno – Albert Dondeyne
  • 6º Colóquio (Novembro de 1966)
    • Tema e Conferência: Comunicação: base de unidade e de pluralidade na comunhão – Leo Alting Von Geusau

 

  • 7º Colóquio (Abril de 1967)
    • Tema e Conferência: A liberdade dentro da Igreja – Hans Küng
  • 8º Colóquio (Março de 1968)
    • Tema: Falar de Deus hoje
      • Conferência: Da ambiguidade de falar de Deus – Pe. Fernando Melro
      • Conferência: O que Cristo nos disse acerca de Deus – Frei Raimundo de Oliveira, O.P.
      • Testemunhos: João Bénard da Costa e Alberto Vaz da Silva

 

Existem muitos documentos relacionados com a preparação dos colóquios e com o balanço feito após a realização de cada um – longuíssimos serões de discussão na sede da Moraes na Av. 5 de Outubro, muitas vezes acompanhados pelo barulho dos carrosséis e pelo cheiro a sardinha assada da vizinha Feira Popular.

Foram­-se aperfeiçoando esquemas e horários, adaptando­‑os a temas e a conferencistas. A partir de certa altura, insistiu­-se na importância da presença de teólogos estrangeiros, a qual, de facto, se concretizou a partir do quarto colóquio. A possibilidade de participação deixou então de estar restrita a assinantes da revista, o que alargou muito significativamente o alcance e a influência das iniciativas.

Sempre que se deslocavam a Portugal, estes teólogos tinham também reuniões restritas com os «Amigos da Concilium», onde os assuntos eram discutidos com maior frontalidade e aprofundamento.

Quando Hans Küng veio a Portugal, em 1967, para dirigir dois colóquios, um em Lisboa e outro no Porto (em 5 e 7 de Abril, respectivamente), a PIDE interessou­‑se. Em ofício interno, transcreveu uma notícia do Diário de Lisboa, de 2 de Abril5, que anunciava os colóquios e, a encarnado, à margem do texto, ordenou:
«Procurar assistir à Conferência:
– ver matrículas dos automóveis;
– ver quem comparece;
– procurar fixar as ideias gerais da Conferência.
             a) Silva Pais.»6

Os agentes da polícia, destacados para a Igreja de Santa Isabel em Lisboa e para o Colégio do Rosário no Porto, fizeram o que puderam: identificaram dezenas de automóveis (com nomes dos proprietários e respectivas moradas); disseram que estavam 600 pessoas no Porto e 1.200 em Lisboa; não viram pessoas que conhecessem (este tipo de meios não lhes seria ainda muito familiar) a não ser, em Lisboa, o Pe. Alexandre Nascimento e... Mário Soares! Tiveram ainda mais dificuldades em «fixar as ideias gerais», já que apenas anotaram meia dúzia de banalidades. E, no entanto, a conferência de Hans Küng foi tudo menos banal. Disse logo no início:
«Igreja e liberdade? “Mas que interessante”, disse­­‑­me, com um amável sorriso, um colega de uma universidade americana. “Eu sei que a Igreja existe e sei que existe a liberdade, mas não sabia que as duas podiam juntar­‑se”.»7  

Terminaria, observando:
«A liberdade no seio da Igreja não é uma realidade, é uma exigência. Que a Igreja goze de maior ou menor liberdade, isso depende de vós, de mim, de todos nós»8.
   
O último dos oito Colóquios realizou­‑se em Março de 1968. Não tenho elementos que me permitam recordar por que razão acabaram. Sei que este período coincidiu com uma ausência de Helena Vaz da Silva em Paris, para frequentar a universidade de Vincennes. Além disso, estavam agitados os espíritos nesse ano de 1968 e o ambiente era provavelmente já pouco propício para tão longas discussões teológicas...

Era aliás bem patente o mal­‑estar dentro da Igreja, mesmo ao nível dos seus pensadores mais proeminentes. Em 16 de Dezembro de 1968, trinta e oito teólogos publicaram, simultaneamente num jornal italiano e noutro alemão, uma declaração intitulada A liberdade dos teólogos na Igreja. Muitos nomes conhecidos, ligados ou não directamente à Concilium, entre os quais... Joseph Ratzinger, o actual papa Bento XVI. Afirmaram:

«Em perfeita lealdade e sincera fidelidade para com a Igreja Católica, os teólogos abaixo­‑ assinados vêem­‑se constrangidos e na obrigação de chamar abertamente e pela mais grave forma a atenção para o facto de a liberdade dos teólogos e da teologia ao serviço da Igreja, reconquistada pelo Segundo Concílio do Vaticano, não dever ser hoje posta em perigo. [...]

Qualquer forma de inquisição, por mais subtil que possa ser, acarreta prejuízo ao desenvolvimento de uma teologia sã, além de que é altamente nociva para a credibilidade de toda a Igreja no mundo de hoje. [...]

Gostaríamos de cumprir a nossa missão de procurar a verdade e de a anunciar, sem o obstáculo de medidas e sanções administrativas. Pretendemos que se respeite a nossa liberdade todas as vezes que, pela palavra ou por escrito, comunicamos as nossas convicções teológicas fundamentadas e o fazemos pela aplicação do melhor do nosso saber e da nossa consciência»9.

Em três anos, desde o início da publicação da Concilium, muita coisa tinha mudado. Entusiasmos mais ou menos vitoriosos tinham dado lugar a inquietudes e exigências, era outro o vocabulário.

Em Portugal, os diferentes pólos de actividade em que muitos católicos actuaram durante a década de 60 complementaram-se e foram dando forma a novos modos de estar e de agir. A Concilium foi um desses pólos, com características específicas: movia-se numa arena internacional (o que era importantíssimo num Portugal ultra-fechado e com terríveis dificuldades de acesso a informação), do mais avançado que então existia dentro da Igreja no plano teológico e onde, por uma vez, não chegámos atrasados, já que Portugal esteve presente desde o lançamento da revista. Permitiu que conhecêssemos pessoalmente teólogos que nos visitaram e nos ajudaram a abrir horizontes. Alguns deles foram mais tarde marginalizados e perseguidos dentro da Igreja. Outros, como muitos de nós, foram saindo – silenciosamente ou nem por isso.

A publicação da Concilium em português migrou depois para o Brasil e ainda existe em vários países10.

Significativamente, num dos números de 2005, Hans Küng (ainda ele, quarenta anos depois...) escreveu um artigo intitulado O concílio esquecido?

Um outro número de 2005 teve como tema Ciberespaço, ciberética e ciberteologia. Porque não?

1 Primeiros membros dos «Amigos da Concilium»: Pe. José da Felicidade Alves, Manuel Bagulho, Pe. Fernando Belo, Frei Bento Domingues, Pe. Armindo Duarte, Cón. Manuel Falcão, Castro Fernandes, Joana Lopes, Pe. Madureira, José Domingos Morais, Margarida Morais, Frei Raimundo de Oliveira, Pe. Pedro Pelletier, Frei Mateus Cardoso Peres, Pe. Honorato Rosa, Pe. António Serrão, Alberto Vaz da Silva, Helena Vaz da Silva, Joana Veloso.
A composição deste grupo foi­‑se alterando ao longo do tempo, mas esta foi a lista «oficial» enviada para a Holanda.

2 Este e muitos outros documentos relacionados com os «Amigos da Concilium» foram­‑me disponibilizados por Nuno Estêvão Ferreira.

3 A leitura da acta recordou­‑me que essa comissão foi constituída pelos padres José da Felicidade Alves e António Serrão, por Joana Veloso e por mim própria.

4 Este esquema não foi sempre respeitado: por exemplo, houve casos em que os Trabalhos de Grupo foram omitidos, outros em que houve mais do que uma Conferência.

5 O colóquio foi divulgado, junto dos sócios e pelo Diário de Lisboa, com o título A verdade dentro da Igreja, mas veio a ter como tema, de facto, A liberdade dentro da Igreja.

6 ANTT – PIDE/DGS, Processo CI (1) 1327 vol I, pt 2.

7 Texto policopiado sobre o 7º Colóquio da Revista Concilium, p. 1.

8Ibidem, p. 18.

9 Este texto não foi publicado na Concilium. Localizei­‑o no Caderno GEDOC, nº 2, 1999, pp. 13-14. Os sublinhados são meus.

10 O último número publicado em Portugal data de Dezembro de 1969.