Os Projectos
O António Alçada e o José Rabaça
Maria Manuel Rabaça

Desde que nasci e já lá vão alguns anos, que conheço o António Alçada. É fácil explicar a razão, o António já passava férias em casa da minha mãe, antes da Lena como ele lhe chama, ter casado com o meu pai, que por sua vez, conhecia o Alçada desde muito, muito jovem. Era nesta casa, em Seia, que passavam as férias grandes e que o António pedia à minha avó materna para lhe fazer uma dieta rigorosa, porque se sentia muito mal disposto.

Lembro-me da minha avó contar com graça, que o António quando se ia embora, estava sempre com óptimo aspecto, porque acabava por comer a dieta e o resto, onde não faltava um magnífico queijo da serra e broa de milho. A minha avó a quem o António chamou sempre tia Zézinha gostava muito de o ter em casa, foi sempre muito bem educado e contava-lhe imensas histórias adequadas à sua idade e ao seu estado, uma mulher um pouco deprimida, pois perdeu com vinte e poucos anos o marido e um filho pequeno.

Em Lisboa, ambos frequentavam a Versailles, pastelaria, onde se reuniam vários jovens com tendências intelectuais, tais como o David Mourão Ferreira, o João Belchior Viegas e outros, enquanto o meu pai frequentava o Colégio Moderno e depois como jornalista no Século e o António Alçada num Colégio de Jesuítas e depois na Faculdade de Direito.

O António e o meu pai faziam parte de uma certa boémia lisboeta, onde muita gente da cultura daquela época se integrava, passado algum tempo ambos casaram com as suas namoradas, respectivamente a Maria José Nobre Guedes e a Maria Helena de Mello.

Deste casamento nasceram vários filhos; a Rita, a Inês, a Sofia, a Marta, a Ana, o Pedro e o Luis, sendo que, a Rita tem exactamente a mesma idade que eu. A memória mais antiga que eu tenho do António Alçada foi da primeira vez que fui a sua casa, era eu muito pequenina, e ele me levou a ver os seus filhos que estavam a jantar numas mesas muito baixinhas, com umas cadeiras mínimas e umas toalhas coloridas com animais.

A partir desse momento conheci todos os seus filhos e tenho por eles uma enorme ternura e cumplicidade. Lembro-me, como se fosse hoje, quando a Zézinha e o António telefonaram para Manteigas, para informarem os meus pais que iam ter mais uma criança – a Ana – e que o meu pai ficou preocupadíssimo com o António, devido à família Alçada ir ter mais uma menina. É óbvio que, no dia em que a Ana nasceu e se teve conhecimento da sua vinda ao mundo, os meus pais vieram de imediato para Lisboa, até porque a Ana ficou na incubadora durante longo tempo.

A partir do momento em que vim viver para Lisboa, a minha relação de amizade e cumplicidade com o António intensificou-se e passei a ir jantar frequentemente a sua casa e a restaurantes, onde me eram apresentadas várias pessoas, principalmente intelectuais brasileiros. Quando fui ao Brasil passar umas férias em casa do Jorge Amado e do grande amigo Calasans Neto e Auta Rosa e que por acaso coincidiu com a entrada do António Alçada Baptista para a Academia de Letras Brasileira, em substituição do Professor Marcello Caetano, que entretanto tinha falecido, fomos convidados eu e o António para jantar em casa do Presidente José Sarney. Foi um jantar e uma noite memorável, na mais absoluta intimidade e a conversa decorreu entre dois amigos que discutiam livros e literatura e onde os mais novos, não se sentiam constrangidos em dar a sua opinião. Lembro-me igualmente de um outro jantar em Manteigas, com o António Alçada, o Jorge Amado, o Calasans Neto, o meu pai e respectivas mulheres, em que nos sentámos à mesa às oito da noite e nos levantamos às duas da manhã. Era uma noite de Verão e as conversas eram como as cerejas, não tinham fim, era uma noite mágica, cheia de silêncios cortados pelas gargalhadas que em todos nós provocavam as histórias contadas pelo Calazans Neto.

Foi, igualmente, em casa do António Alçada, que conheci Pinto Leite, dois dias antes de embarcar para a Guiné, onde veio a falecer num terrível acidente. Penso que, devo ao António Alçada, a David Mourão Ferreira e ao meu pai, o privilégio de conhecer tanta gente na área cultural e politica, no Brasil, em Itália e em Espanha.

Enquanto estive na Faculdade de Letras e até acabar o meu curso, era visita assídua da Livraria Morais, onde o Senhor Edmundo me recebia simpaticamente e onde eu comprava todos os livros que queria, visto que, a conta era enviada para Manteigas para o meu pai pagar. Li várias vezes, “ A Peregrinação Interior” e é para mim o grande livro que o António Alçada escreveu e sempre que adoece gravemente releio novamente este livro que me dá paz e é como que uma forma de estar com ele. Um dos últimos livros que o António Alçada editou, dedicou-o ao meu pai, que ficou muito feliz, com este gesto de amizade. Passado algum tempo, o meu pai adoeceu gravemente e faleceu nos HUC, em Coimbra. O António foi a Manteigas ao seu funeral, estava muito triste e a única coisa que foi capaz de me dizer foi o seguinte “GOSTAVA DE MORRER COMO O TEU PAI, COM A MESMA DIGNIDADE DE SEMPRE, CONSCIENTE E RODEADO PELOS SEUS”.

Pois é, António, a vida é assim, lembras-te quando a Engenheira Maria de Lurdes Pintasilgo, te perguntou um dia que passaste pelo palácio de S. Bento, o que estavas ali a fazer e tu respondeste.”Vim ver se estás a tratar bem a minha filha Maria Manuel” e que bem que eu me senti de pertencer á tua família mais próxima.

Devido ao teu estado de saúde e outras circunstâncias, neste momento e como tu sabes é o Miguel Caetano, que tão bem desempenha as funções de pai, mas António, continuaras a ser, como sempre aconteceu, o meu confidente para quem não tenho segredos.

Lembras-te, António, da última vez que viajámos do Rio de Janeiro para Lisboa, em que falamos até a exaustão e depois adormecemos cobertos pela mesma manta e uma senhora brasileira, já de idade, que viajava no mesmo avião, nos disse “ Desejo muitas felicidades ao casal, mas o Senhor tenha cuidado com ela, porque é muito novinha para si.

Até já, António, até sempre.

Lisboa, 15 de Novembro de 2006