Os Projectos
Alçada Baptista – um amigo, um humanista
José Veiga Simão

ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA, desde os tempos em que o conheci até os dias de hoje, representa no meu pensamento a fidelidade à abertura de espírito, o culto da consciência crítica, a tolerância perante contradições humanas, a afectividade permanente na memória, a irreverência na ponderação de valores morais e ideológicos e a criatividade na análise das relações da pessoa humana com a vida e a natureza.

A sua trajectória como ensaísta, memorialista e romancista e, complementarmente, como político, levou-o a movimentar-se entre idealismos e realidades, à procura de um inatingível equilíbrio ideológico, numa constante reclamação da linguagem da verdade... A Peregrinação Interior foi, para mim, no tempo próprio, uma fonte de revelação por preocupações, algumas de originalidade surpreendente, as quais permanecem ao longo da sua Obra como escritor, como desafios perante dualidades que conflituam com lógicas de valores, como da solidariedade e do poder, do corpo e do espírito, da autonomia e da dependência, da igualdade e da excelência, da civilidade e da individualidade, da aventura e da liberdade...

Sem querer introduzir-me, por não ter saber para tal, no íntimo da Obra de Alçada Baptista emerge a imagem de um homem fascinante nas suas certezas e nas suas dúvidas, traduzida por este seu pensamento, ainda actual, expresso na introdução de “Conversas com Marcello Caetano” (1972):
O mundo está cheio de sofrimento não por causa daquilo que não pensámos nem por aquilo que não julgámos, mas fundamentalmente por causa daquilo que não fizemos ou pelo que fizemos mal.

Nesse contexto, Alçada Baptista recorda-nos a pergunta que Sófocles pôs na boca de Creonte:
Será possível conhecer bem a alma, os sentimentos, os princípios dum homem qualquer, se ele nunca te apareceu no exercício do Poder, governando e ditando leis?
Alçada Baptista, em testemunhos de comovida evocação, em diálogos e monólogos repartidos por personagens de vários dos seus livros e nas pegadas deixadas no seu percurso nos Ministérios da Educação e da Cultura, acaba por nos transmitir a mensagem de que tendo convivido com múltiplas personalidades da política, do pensamento e da religião, fortaleceu-se no seu interior a ideia de que no fundo é da mesma natureza humana que sai o bem e o mal.

Para este conceito de suprema tolerância contribui a fidelidade e a amizade como constantes da sua vida e, por isso, de forma natural, a grandeza da sua personalidade emerge nas suas relações antes e pós-Abril com personalidades de múltiplos quadrantes, mostrando à evidência que o autodenominado aprendiz de humanista é, para todos nós, seus amigos, um mestre do humanismo e da afectividade.

Foi no meu tempo como Ministro da Educação, que Alçada Baptista — avesso a horários e a contas e alérgico a burocracias — foi funcionário do Estado no sector emergente da Cultura, que na reorganização do Ministério da Educação Nacional se afirmava em pé de igualdade com o Ensino, a Ciência e o Desporto.
Foi nessa altura que nasceu a Direcção-Geral dos Assuntos Culturais, o Fundo do Fomento Cultural e se apontou a Difusão da Língua e Cultura Portuguesas como uma prioridade do Instituto de Alta Cultura.

Para conceber uma programação estratégica das actividades culturais, nos Museus, nos Teatros, nas Bibliotecas, nos Arquivos... e para dinamizar a Cultura Portuguesa no Estrangeiro foi constituído um Brain Trust, funcionando na directa dependência do Ministro da Educação Nacional, a Comissão Consultiva para a Definição da Política Cultural, cuja acção de mérito indiscutível deu origem à manifestação de invejas e suspeições inusitadas... pequenas histórias da História. A essa Comissão pertenciam Ruben Leitão, Manuel Antunes, Maria de Lourdes Belchior, Freitas Branco, Bairrão Oleiro, Miller Guerra, Lindley Cintra, João Salgueiro, Fraústo da Silva, a que se associaram Vitorino Nemésio, Orlando Ribeiro e Mário Silva...

Alçada Baptista foi um dos conselheiros encarregado de preparar os elementos necessários à inclusão no IV Plano de Fomento das actividades respeitantes a uma nova política cultural... Ao mesmo tempo celebrava-se o Ano Internacional do Livro, sob a égide da UNESCO... No seu entendimento, o carácter estratégico conferido à promoção da criatividade e da difusão cultural no esforço de fomento educativo, resultava, entre outras razões, de estas constituírem suporte fundamental da educação dos portugueses.

O desenvolvimento de uma política cultural constituía, assim, um factor importantíssimo do enriquecimento espiritual da sociedade, favorecendo o despertar de novas formas criativas e a identificação de valores, por vezes ignorados, do próprio património nacional.

Em pouco tempo muitas iniciativas foram lançadas, muitos trabalhos concluídos, muitas ideias em progresso, que tinham a marca de homens que visionaram o futuro e que faziam da independência e da liberdade do pensamento a razão de ser da sua participação numa Reforma simbolizada por “Um homem mais culto é um homem mais livre”.

Ainda hoje assim é. António Alçada Baptista continua a preencher o espaço que associa a aventura à liberdade. Obrigado Amigo de quem guardo preciosos escritos.

Lisboa, Outubro de 2006