Os Projectos
O valor de um Homem livre
Fernando Pinto do Amaral

A minha primeira recordação do António Alçada Baptista data de meados dos anos 70, quando, em plena adolescência – aí por 76 ou 77, no rescaldo de alguma agitação política – , descobri nas estantes cá de casa o 1º volume da Peregrinação Interior, que os meus pais tinham comprado quando saiu em 1971. Aquele livro constituiu na altura uma revelação, porque tentava responder a algumas interrogações que nessa época me assaltavam, sem que eu soubesse formulá-las. Meia dúzia de anos mais tarde, em 1982 – quando me inscrevi na Faculdade de Letras, após ter frequentado Medicina entre 79 e 81 – , alguém me ofereceu o vol. II da mesma Peregrinação, intitulado O Anjo da Esperança, e percebi que estava perante uma obra única e absolutamente fundamental para compreender a evolução da cultura e da sociedade portuguesa ao longo do século XX, ao ponto de, vinte anos depois, a ter seleccionado para uma lista de 100 Livros Portugueses do Século XX, álbum que o Instituto Camões editou em 2002 e onde escrevi a seguinte nota:
“Publicado em dois volumes separados por um interregno de onze anos, este ensaio desenvolve uma serena e sedutora reflexão em torno de algumas questões centrais no percurso intelectual de António Alçada Baptista, aí se destacando a relação com o mistério da existência e em particular com a Igreja Católica, que influenciou a sua formação. Inspirando-se muito em memórias autobiográficas da infância e adolescência, mas também no seu papel na editora Moraes ou na revista O Tempo e o Modo, esta “peregrinação” confronta-se com os problemas da geração a que pertence o Autor, marcada pelo questionar do catolicismo, e atravessa alguns grandes temas da vida contemporânea, criticando a visão materialista subjacente às sociedades de consumo e propondo uma ética da liberdade como meio de uma aprendizagem interior, que abre caminho a uma nova visão da política, do amor e das relações humanas em geral.”

Não havendo motivo para alterar estas linhas, queria acrescentar-lhes hoje alguma coisa, explorando dois ou três tópicos em que a contribuição do António Alçada Baptista terá sido mais importante para mim, quer pelo que escreveu, quer pelo seu exemplo como pessoa – e no caso dele a vida e a escrita são indissociáveis. Assim, começaria por sublinhar a sua atitude em face disso a que poderia chamar-se o apelo religioso e, em particular, da mensagem cristã: reflectindo uma origem burguesa e uma educação católica longamente percorridas e desmontadas em quase todos os seus livros (mesmo nos romances, que são sobretudo romances de ideias), o António Alçada Baptista nunca desistiu de procurar um sentido transcendente para a existência humana, fazendo-o sem dramatismos nem crises místicas, mas interpelando sempre o mistério de estarmos no mundo. Isso levou-o a afastar-se de quaisquer posições dogmáticas e a assumir as naturais oscilações de alguém que, apesar de tudo, se manteve aberto a esse enigma: “A verdade é que tenho dias em que acho que sou um céptico com a nostalgia da fé, outros em que sou um crente com a nostalgia da dúvida” (O Anjo da Esperança, 1982, p. 33).

Esta ambivalência traduz, desde logo, uma lucidez e uma honestidade intelectual pouco frequentes entre nós e extensivas a tudo o que o António Alçada tem escrito ou tem feito, seja no modo como questionou uma certa visão dos afectos, seja no plano político e social. Quanto ao primeiro aspecto, gostaria de destacar a sua incessante interrogação dos mecanismos do amor e do desejo no Ocidente, indo em busca de formas libertadoras de viver as ansiedades e os dilemas das relações afectivas, pondo em causa algumas regras da hipocrisia social dominante e as compensações materiais que por vezes (demasiadas vezes...) inventamos para nos furtarmos à nossa verdade mais profunda: “Creio que um subtil sistema de compensação se estabeleceu entre o amor e as coisas: quando não há amor, tem de haver coisas; quando as pessoas amam, as coisas não são necessárias”
(Id., p. 380).

Outro campo de reflexão decisivo para o António Alçada tem sido o político, embora não num sentido estritamente ideológico ou partidário: confrontado com um regime ditatorial que em consciência não podia aceitar, também não embarcou em cantos de sereia totalitários e manteve-se fiel a um projecto de democracia mais atento às necessidades concretas das pessoas do que a qualquer esquema ideológico predeterminado, traçado a régua e esquadro. O seu exemplo ético revelou-se, acima de tudo, na maneira generosa e desinteressada de agir, já que arriscou (e perdeu) boa parte do seu património pessoal na aventura que foi a editora Moraes e a revista O Tempo e o Modo, empenhando-se nessa experiência juntamente com um grupo de católicos críticos do regime – João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Alberto Vaz da Silva, Nuno Bragança, José Domingos de Morais, etc. – e sabendo fazer das suas páginas um insubstituível espaço de debate cultural e político, num clima de grande abertura e liberdade. Reconhecemos-lhe hoje esse papel, mas deve sublinhar-se que para ele não se tratava de a editora ou a revista servirem de trampolim para qualquer protagonismo político: “Eu não queria fazer carreira política. Queria fazer uma intervenção ética no sentido de se dar à sociedade portuguesa um estatuto onde o homem pudesse viver com dignidade” (Pesca à Linha – Algumas Memórias, 1998, p. 94)

É precisamente essa busca da dignidade humana que continuo a associar à vida e à obra do António Alçada Baptista – uma vida e uma obra exemplares a vários títulos, desde o modo como nunca se quis levar demasiado a sério até à genuína admiração que sempre soube partilhar por tanta gente em quem deixou um rastro quente de amizade – o Alexandre O’Neill, o José Escada, o Nemésio, o Rubem Fonseca, o próprio Jorge Luis Borges, entre tantos outros – , passando pela sua ética do possível, que me parece um bom programa para encontrar alguma serenidade e para melhorar um pouco o mundo em redor de cada um de nós:  
“Encontrar a harmonia que está contida nos nossos inevitáveis limites é talvez a maneira mais segura de sairmos da angústia que nos provoca a impotência perante os nossos intransponíveis ilimites e isso começa pelo conhecimento de nós próprios e pela nossa própria aceitação. Borges [...] dizia: ‘La ya avanzada edad me ha enseñado la resignación de ser Borges’. Independentemente da minha idade, há muito estou conformado em ser António Alçada Baptista e vou até ao ponto de dar graças a Deus por não me ter dado feitio para ser herói, santo ou prócere da Pátria. De resto, imitando Martin Buber, direi: ‘Deus não te pedirá contas por não teres sido Moisés, Elias ou Francisco de Assis, mas porque não foste verdadeiramente António Alçada Baptista” (O Anjo da Esperança, 1982, p. 481).

Perdoe-se-me a longa citação, mas foi-me necessária para que se entenda o bom senso e o alcance da lição ética subjacente àquilo que o António Alçada simboliza para mim: uma espécie de tranquila humildade que nada tem a ver com qualquer ideia de sacrifício pessoal, mas que, muito pelo contrário, radica no prazer que a vida nos pode dar a cada momento, na sábia aceitação do que somos – com as nossas qualidades e os nossos defeitos – e na tentativa de conferir alguma justeza a cada um dos nossos actos, adequando-os a tornar um pouco mais feliz a vida de quem nos rodeia e por isso também a nossa. Se a palavra não estivesse infelizmente já gasta, diria tratar-se de um novo humanismo, feito para homens e mulheres livres, capazes de pensar pelas suas próprias cabeças, situando-se nos antípodas da asséptica sociedade de técnicos ou de especialistas em que estamos a tornar-nos e resistindo à invasora barbárie técnico-científica que hoje leva o nome do “politicamente correcto”, coarctando-nos a liberdade de espírito e tolhendo-nos cada vez mais com inúmeros regulamentos e proibições.

Para concluir este breve depoimento, só desejo acrescentar que, tendo entretanto conhecido o António Alçada Baptista, confirmei nas nossas conversas em Lisboa ou em Vila Nova do Coito esse lastro de afinidades que às vezes consegue unir os homens para lá das gerações. O tempo que lhe coube viver não terá sido exactamente o meu – o António Alçada é da idade da minha mãe, separam-nos 33 anos – , mas é daquelas pessoas de quem me sinto mais próximo e profundamente contemporâneo. E como sei que ele gosta de dividir os seres humanos entre os que preferem a liberdade e os que, pelo contrário, preferem a segurança, a melhor homenagem que lhe posso fazer é dizer-lhe que tentarei continuar a ser fiel à primeira destas alternativas.