Os Projectos
Sob o signo da Esperança
Eduardo Lourenço

É bem singular a figura cultural de António Alçada Baptista. A primeira tentação seria a de associar àquela movência que nos a60 e ainda começos dos anos 70 do nosso passado século está conotada com o “catolicismo de esquerda”. Não lhe convém. No seu caso a balança penderia não só para o catolicismo mas para a nossa mais tradicional versão dele. O fundador de “O Tempo e o Modo” foi sempre alguém atento aos “sinais dos tempos” tão cultivados pelo Papa da sua época de intervenção cultural e ainda inovadora, Paulo VI. Mas nunca foi um homem de “modas”. Ética e politicamente, como outros católicos da sua geração vivem com desconforto a atmosfera ideológica da fase fina do antigo regime. Mas isso não basta para que o possamos inscrever em qualquer forma de “esquerdismo” ideológico de perfil militante.

O fascismo marxista tão comum na sua geração nunca o tocou. A sua paixão foi e é a de um cristianismo por essência conotado com a liberdade de ser e actuar. Mas António Alçada Baptista nunca se deu ares de “guru” nem de profeta, graças aos céus. A liberdade conatural dos filhos de Deus basta-lhe como dom de vida e doação. E por temperamento nada nele se sintonizava com poses dramatizantes diante de si ou dos outros. O paradoxo é que essa maneira de ser não o confinou no papel de “dândi” cultural, nem sequer de “espectador” de perfil orteguiano. Uma certa displicência e muito gostoso sabor da vida, sem o afastar das preocupações com a “desordem” estabelecida que era menos de ordem política e ética, do que cultural, pouparam-lhe excessos teatrais. A conversação (a conversa) foi e é a sua forma de estar na vida, aceitando os outros como eles são. Uma conversa infinita por assim dizer.

O paradoxo no caso de António Alçada Baptista é que o autor do “Anjo da Esperança” e do “Riso de Deus”, tão aparentemente desprendido, esteve no centro de uma autentica revolução cultural entre nós. Parece-me que ainda não mereceu toda a atenção até hoje. Foi em todos os sentidos um autêntico “aggiornamento” do nosso discurso católico do estatuto e intenção conservadora, senão tradicionalista. Vindo de dentro e não da histórica contestação da versão cristã, de raiz positivista e anticlerical, como era de norma entre nós. Sem ser de um “revolucionalismo” transcendente – como o seriam se se tivessem reclamado filosoficamente da grande linhagem anti-cristão, a de Marx, Nietzsche ou Freud, os famosos pequenos volumes da Moraes Editores, veiculavam uma  exegese cristã, uma hermenêutica e uma apologética, em geral de cunho anglo-saxónico, de perturbadora interpretação da nossa tradicional vivência do catolicismo. Ignoro que espécie de “terremoto” mental, tais ensaios tenham deixado nos leitores da época. Mas não posso ver que, lidos como foram, os livros de Paul Tillich, mas sobretudo do famoso autor de “Um Deus diferente” e “Pesquisa em terra de Deus”, de John Robinson, tenham deixado os seus leitores incólumes. E espanto, dada a susceptibilidade da época em matéria religiosa, uma tal colecção tenha sido possível. É um bom ponto em favor do Antigo Regime, mas sobretudo em favor de António Alçada Baptista e os seus colaboradores nessa espécie de “nova evangelização”, pelo menos, em termos culturais. Não havia, entre nós, uma grande discussão de matérias de fé da nossa fé tradicional – e isso bastava para lhe assinar um lugar incomum no nosso panorama cultural, mesmo se essa preocupação, nessa época, eram só de uma minoria e a única questão candente se prolongava quase só entre o Marxismo como ideologia anti-capitalista dominante e um Catolicismo, tradicionalmente vivido como resposta e barreira contra a então visão materialista da História do Mundo.

A António Alçada Baptista, a geração de “O Tempo e o Modo” ficámos todos a dever a criação de um espaço espiritual com consequências na nossa vida social imediata, não apenas mais “tolerante” mas consciente do maniqueísmo intrínseco dessa oposição e a busca de uma “terceira via”, aquele que o mensualista e o ficcionista construía para sua salvação humana. A via da Esperança. Não por pouco. Não é pouco.

Vence, 22 de Novembro de 2006
Eduardo Lourenço