Os Projectos
"É no Outono..."
Annabela Rita

“É no Outono que a gente é capaz de reparar que a vida não é banal”1: assim fundamenta e legitima António Alçada Baptista o seu acto de escrita e o curso do mesmo. Nesse reparar, nessa capacidade de o fazer que se desenvolve e se exprime:

“É que, a certa altura, a vida é outra e o próprio passado não é bem aquilo que a gente viveu, porque, em cada tempo, há uma forma de olhar, e aquilo que vivemos não está no mundo, está na maneira como olhámos para ele.” (OTO, p. 13)

Na capa d’O Tecido do Outono, duas folhas de cor diferente oferecem-se-nos sobre a linha que delimita terra e água: entre esses dois espaços, as folhas, dispostas em simetria invertida e quase tangenciais, ligam-se pelas hastes, uma sobrepondo-se à outra, esta escondendo-se sob aquela. Tecendo um Outono em que simbólico Outono repara, nele se debruçando para perscrutar nas nervuras vegetais e na sua paisagem lunar e rugosa o mistério das da existência e das relações humanas, a complexidade do aparentemente simples, a simplicidade do logicamente complexo:

“Acredito que é possível descobrir pedaços de luz no meio de tudo isso. São coisas destas que me levam à convicção de que a vida para que fomos feitos não é, de modo nenhum, aquela que andámos a viver. Em rigor, o nosso destino poderia parecer trágico: por um lado, caminhamos inexoravelmente para a solidão, por outro, temos como futuro o esquecimento. Tenho a convicção de que somos seres em formação, pois o projecto humano não aponta para aqui. Penso que ele nos vai sendo revelado por pequenas nostalgias de coisas ainda não vividas, que se exprimem por intuições avulsas e, apesar de tudo, pelo halo poético do mundo, que seria mais visível se acertássemos a maneira como olhamos para ele. Depois também há os que já nasceram mais à frente no caminho do futuro. A consciência da complexidade de viver leva-me a pôr de parte as amarguras e as melancolias metafísicas. Por um lado, sinto que o tempo e o universo me olham com indiferença e distância /…/. Por outro, tenho a simultânea convicção de que tudo o que é importante se forma a partir da consciência da nossa história pessoal, por mais pobre e mais monótona que ela seja.” (OTO, pp. 13-14)

Este olhar autoral atento, indagador, aspirando à compreensão, fixa-se em histórias, amores, memórias, incidentes, enfim, em tudo aquilo que, sendo ficção, pode, de algum modo, ir representando a diversidade da vida, “hipóteses existenciais”, na expressão de Milan Kundera.

Compreensivo, esse olhar é, também, naturalmente, afectivo, emocionado, sensível, e, até, amoroso, como denuncia em amoroso reencontro de ex-amantes:

“Estas minhas palavras tiraram à Matilde uma espécie de vergonha que eu sentia no corpo dela um pouco tenso, com pouco à vontade para se entregar porque o peito já não estava como era, a cara já tinha rugas e a perna mostrava já uma pequena variz. Ela disse:
– Tu és único. Esperava tudo menos dizeres-me que o meu corpo merecia mais ternura do que quando me conheceste!
– Exactamente isso. Quando é que nós estivemos nus com este à vontade, com a sensação subcutânea de termos, não digo um inimigo mas um adversário, um intruso, um outro que não se identificava inteiramente connosco? As relações de sexo podem ser vividas enquanto somos novos, mas os encontros de amor exigem esta maturidade, quase a ausência do desejo. Gosto de estar aqui contigo, fazer festas no teu corpo já cheio de tempo, apetece-me beijar-te porque estou a beijar a tua história pessoal, aquilo que viveste, as tuas alegrias e as tuas dores. É nestas coisas que sinto que envelhecer é uma arte e que o amor só se vive plenamente quando o desejo já não comanda o nosso encontro mas sim aquilo que somos e a qualidade da nossa relação. Quando casei tu eras nova, mas nunca consegui estar contigo como estou agora.” (OTO, p. 182)

E tudo isso se verte numa tessitura eminentemente convivial: a conversa, a escrita, a escrita-conversa. No discurso. Na ficção como na vida.
António Alçada Baptista seduz-nos, pois. Pela autoral humanidade com que repara na vida e nos convida a reparar também, com ele:

“Quando penso na minha vida e nas circunstâncias atribuladas do tempo que me foi dado viver, pressinto o que será a incomodidade dum bêbado no dia seguinte ao da sua bebedeira, porque nos encharcámos de razão e de esperança terrena e tudo ficou aquém de todas as promessas: tudo mais pequenino e mais cruel. Pior: é uma sensação misturada da ressaca do bêbado com uma certa forma de orfandade: um desamparo perante a perda da herança prometida no texto fundador que fixou o projecto da nossa condição, como se, ao decretar-se a morte de Deus, ele tivesse levado consigo todos os seus bens. É isso que me leva a olhar para tudo o que vivi como se fosse um ensaio falhado duma harmonia possível.

Tudo me leva a crer que as marcações que nos deram para o desempenho da vida passam ao lado do caminho por onde os nossos afectos poderiam fluir conforme o que está inscrito no mapa oculto do ser humano. /…/

Isto não tem nada a ver com a Rosa, nem com a Marina, nem com a Hanah, nem com a Mónica, nem mesmo com a Rita.” (ORD, p. 13)2

E pelo modo como nos toca e comove através do eu discursivo que abre os seus textos e se expande neles, com que parece oferecer-se-nos confessionalmente, em cúmplice partilha sob o riso de Deus, em tecido de Outono

Linda-a-Velha, 20/10/2006


1 António Alçada Baptista. O Tecido do Outono [1999], 5ª edição, Lisboa, Presença, 2000. [OTO]
Por comodidade, todas as citações terão as suas referências entre parênteses no corpo do texto e serão utilizadas as iniciais dos títulos das obras de que são retiradas.

2  António Alçada Baptista. O Riso de Deus [1994], 5ª edição, Lisboa, Presença, 1994. [ORD]